Pesquisa sobre 'Jesus histórico' retrata Cristo mais humano, mas não ameaça fé
Anúncio do Reino de Deus, judaísmo e humildade marcam Nazareno.
Evangelhos mesclam fatos e interpretações feitas por grupos cristãos.
É um bocado irônico que o personagem mais influente da história humana também seja um dos mais misteriosos. Jesus de Nazaré não tem data de nascimento ou morte registrada com segurança (embora seja possível estimá-las com margem de erro de dois ou três anos); não deixou nada escrito de próprio punho (há até quem argumente que ele provavelmente era analfabeto); não restou um único artefato do qual se possa dizer com certeza que pertenceu a ele.
Os relatos de seus seguidores, escritos entre duas e seis décadas após a morte na cruz, falam com riqueza de detalhes de um período curtíssimo de sua vida adulta, elencando seus atos e ensinamentos, mas nos deixam no escuro sobre a maior parte de sua infância e adolescência, suas angústias pessoais e seu relacionamento com amigos e familiares.
A situação pode soar desesperadora ao extremo para um historiador que, sem recorrer à fé cristã, queira reconstruir a vida e a mensagem desse judeu singular. Mas a situação é menos complicada do que parece. Por um lado, é preciso reconhecer que os Evangelhos, principais narrativas sobre Jesus na Bíblia cristã, não são livros históricos no sentido moderno do termo. “Os textos dos Evangelhos, todos eles, são uma combinação de elementos históricos e interpretações feitas posteriormente no âmbito das comunidades cristãs", lembra o padre Léo Zeno Konzen, coordenador do curso de teologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (RS).
Trocando em miúdos: os evangelistas (conhecidos entre nós pelos títulos tradicionais de Mateus, Marcos, Lucas e João) estavam tão preocupados em relatar o que tinha acontecido com Jesus e os apóstolos 50 anos antes quanto em tornar esses fatos relevantes para seu público, formado por cristãos nascidos depois que seu Mestre morrera na cruz. A boa notícia, porém, é que a leitura crítica e cuidadosa dessas narrativas é capaz de resgatar grande parte da vida terrena de Jesus.
O retrato que emerge desse esforço é, em certos aspectos, familiar para qualquer cristão, ao mesmo tempo em que humaniza o Nazareno. O chamado Jesus histórico é uma figura humilde, que põe sua mensagem - o anúncio da chegada do Reino de Deus - acima de qualquer preocupação com sua própria importância. Não se comporta como uma entidade superpoderosa ou onisciente. E coloca em primeiro lugar a história e o destino do povo de Israel, ao qual pertence. É um Jesus que pode ajudar os cristãos a repensarem a origem de sua própria fé - mas difícilmente é uma ameaça a ela, a menos que se acredite que todo versículo dos Evangelhos é verdade literal, como se fosse um filme do que aconteceu no ano 30 d.C.
Suposto 'túmulo de Jesus': Idéia nunca foi comprovada : 'New York Times' Homem invisível. Volta e meia ressurge a esperança de que os Evangelhos não serão mais a principal (ou mesmo a única) fonte sobre o Jesus histórico. Há quem coloque suas fichas em achados arqueológicos, como inscrições, túmulos e textos antigos. Dois exemplos recentes desse tipo de pesquisa, porém, não tiveram um resultado dos mais gloriosos.
Em 2002, foi a vez do chamado Ossuário de Tiago, uma caixa de pedra feita originalmente para conter o esqueleto de um homem que morreu em Jerusalém no século 1. No artefato havia uma inscrição em aramaico (língua aparentada ao hebraico que era a mais falada entre os judeus do tempo de Cristo), com os dizeres: “Tiago, filho de José, irmão de Jesus”. O ossuário, afirmavam alguns especialistas, teria pertencido a Tiago, irmão ou primo de Jesus que liderou a igreja cristã de Jerusalém até o ano 62 d.C. Mas análises mais detalhadas comprovaram que o pedaço crucial da inscrição (“irmão de Jesus”) foi adicionado por um falsificador do século 21.
Um bafafá parecido cercou, em 2006, novas análises de outros ossuários de Jerusalém, originalmente desenterrados nos anos 1980. Num mesmo jazigo familiar estavam enterrados “Jesus, filho de José”, Maria (a mãe dele?), Mariamne (supostamente, Maria Madalena) e outras pessoas cujos nomes lembram os de personagens do Novo Testamento. Um documentário produzido por James Cameron (ele mesmo, o criador de "Titanic") defendeu que os ossuários eram a prova de que Jesus tinha se casado com Maria Madalena. Os defensores da tese argumentam que seria muito improvável a ocorrência conjunta desses nomes na Jerusalém do século 1 d.C. sem que houvesse uma ligação com Jesus de Nazaré. Nenhum estudioso sério do Jesus histórico, contudo, dispôs-se a comprar a idéia – calcula-se que, só na Cidade Santa, teriam vivido mais de mil “Jesus, filhos de Josés” nessa época.
Esses fracassos talvez tenham uma explicação muito simples: a pessoa de Jesus pode ser “invisível” para a arqueologia. “E não só ele como quase toda a primeira e a segunda geração de cristãos. São pessoas periféricas, gente muito simples, de origem rural”, afirma André Leonardo Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Romanos e judeus de classe alta construíam palácios e tinham selos (carimbos) pessoais feitos com metal ou pedra preciosos; carpinteiros e pescadores da Galiléia (a terra natal de Jesus, no norte de Israel), por outro lado, podiam passar a vida inteira usando apenas materiais perecíveis. Chevitarese, aliás, é cético até em relação à idéia de um enterro formal para Jesus.
“Em todo o mundo romano, o costume era abandonar o cadáver na cruz, para ser comido por abutres ou cães”, lembra o historiador da UFRJ. Ele também diz ser suspeita a figura de José de Arimatéia, judeu rico e simpatizante secreto de Jesus que teria obtido seu corpo e organizado seu sepultamento, segundo os Evangelhos.
“Camponeses como os seguidores de Jesus não teriam como se dirigir a Pilatos para exigir o corpo. Assim, os evangelistas enfrentam o problema de explicar o sepultamento de Jesus e usam a figura de José de Arimatéia, que praticamente cai de pára-quedas na narrativa”, diz. Por outro lado, há pelo menos um registro de crucificado judeu que teve um sepultamento digno – Yehohanan (João), filho de Hagakol, cujo ossuário foi descoberto por arqueólogos israelenses em 1968. O osso do calcanhar de Yehohanan ainda continha o cravo usado para pregá-lo na cruz.
Fora algum tremendo golpe de sorte, o máximo que a arqueologia pode fazer é iluminar a vida cotidiana no tempo de Jesus (indicando em que tipo de casa ele vivia ou que modelo de taça ele teria usado para beber vinho com seus discípulos) ou como era a religião judaica naquela época. Esse provavelmente é o caso de um misterioso texto do século 1 a.C., pintado numa pedra e analisado por Israel Knohl, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Em julho passado, Knohl apresentou sua interpretação do texto (o qual não está inteiramente legível e, por isso, tem de ser reconstruído hipoteticamente): ele mencionaria a morte e ressurreição de um Messias décadas antes do nascimento de Jesus. Ainda que a interpretação esteja correta, é difícil ver como ela mudaria nossa compreensão sobre as origens do cristianismo: afinal, um dos grandes argumentos dos seguidores de Jesus é justamente que seu retorno dos mortos já tinha sido previsto nas profecias judaicas.
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O meu, o seu, o nosso Jesus
Se a invisibilidade arqueológica não ajuda, a imaginação e as preocupações modernas também atrapalham um bocado. No esforço de tornar o Jesus histórico relevante para a nossa época, ou como forma de polemizar com as atuais religiões cristãs, pesquisadores como o historiador irlandês John Dominic Crossan defendem que Cristo não se preocupava com a vida eterna ou o Juízo Final, mas pregava uma ética totalmente centrada no aqui e no agora, influenciada pela cultura grega. Outros enfatizam seu lado de revolucionário político, ou mesmo o retratam como uma espécie de mago itinerante, cujos milagres não passavam de truques.
“Acho que isso equivale a esvaziar Jesus”, avalia Chevitarese. "Não se pode tirá-lo do seu contexto judaico nem eliminar seu lado apocalíptico e escatológico [o de um profeta que espera o final dos tempos e a consumação da história humana]”, diz o historiador da UFRJ. Isso não quer dizer, por outro lado, que a pregação de Jesus fosse completamente isenta de idéias sobre a sociedade e a política. “A própria escatologia judaica também tem um substrato político”, lembra Luiz Felipe Ribeiro, professor da pós-graduação em história do cristianismo antigo da Universidade de Brasília (UnB). Ele cita um exemplo cristão, o livro do Apocalipse, que pode ser lido tanto como uma previsão do fim do mundo quanto um ataque contra a opressão romana que afetava os cristãos.
Para John P. Meier, professor da Universidade Notre Dame (EUA) e autor da monumental série de livros "Um Judeu Marginal" (ainda não concluída) sobre o Jesus histórico, o pregador de Nazaré resume e mistura o espiritual, o social e o político na frase-chave de seu anúncio profético: o “Reino de Deus”. Essa é a tradução mais comum em português do grego hé basilêia tou Theou, cujo sentido provavelmente está mais para “o Reinado de Deus” – a idéia de que Deus estava prestes a intervir dramaticamente no mundo, resgatando seu povo de Israel, instaurando seu domínio de justiça e paz e incluindo até os povos pagãos entre seus escolhidos nesse Universo transformado.
“Isso explica por que Jesus parece relativamente despreocupado em relação a problemas sociais e políticos específicos. Ele não estava pregando a reforma do mundo; estava pregando o fim do mundo”, escreve Meier. No entanto, em vez de se concentrar nos terríveis tormentos que aguardariam os pecadores que não se arrependessem, o profeta da Galiléia ressaltava que o Reinado de Deus era um poder misericordioso, aberto a todos os que o recebessem.
Não é à toa que algumas autoridades judaicas, ou o grupo dos fariseus (algo como “separados”, em hebraico) ficavam escandalizados com o lado festivo da vida de Jesus e seus discípulos. Afinal, eles não hesitavam em comer e beber com cobradores de impostos, prostitutas e outros “pecadores notórios” da sociedade israelita, como sinal da proximidade e da inclusão do Reino.
“Proximidade”, aliás, talvez não seja a palavra exata: ao mesmo tempo em que Jesus via o Reinado de Deus como uma promessa a se realizar no futuro próximo, também insinuava que esse Reino já estava presente no ministério do próprio Cristo, diz Meier. “As curas e os exorcismos realizados por Jesus não seriam, portanto, meros atos isolados de bondade e compaixão: estariam mais para demonstrações dramáticas de que o Reino de Deus já estava chegando a Israel”, afirma o pesquisador. Não dá para forçar a mão de Deus, diz Jesus: seu Reinado é um ato espontâneo de misericórdia, voltado não para quem o merece, mas para quem mais precisa dele – os pobres, os famintos, os que choram. Não é à toa que esse Deus recebe de Jesus o apelido de Abbá – nada menos que “papai” em aramaico.
Mais importante ainda, Jesus se apresenta como o mediador para os que querem participar do Reinado de Deus: rejeitar sua mensagem equivale a rejeitar a ordem divina. E, como registram os Evangelhos, a proclamação é voltada exclusiva ou principalmente a judeus como Jesus. Não é à toa que ele escolhe os Doze Apóstolos (provavelmente simbolizando as doze tribos de Israel, espalhadas pelo mundo, que Deus deveria reunir no fim dos tempos) e ordena que eles se dirijam apenas às “ovelhas perdidas da casa de Israel”. Para Jesus, a imagem desse Reino de Deus consumado é a de um banquete – e, paradoxalmente, ele chega a afirmar que alguns de seus compatriotas judeus, os que não o aceitam, poderão ser os barrados no baile, enquanto gente “do Oriente e do Ocidente” – os pagãos – acabam sendo incluídos.
Retrato múltiplo
É possível extrair essas linhas gerais da missão de Jesus do material do Novo Testamento, mas é bem mais complicado afirmar se, durante sua vida terrena, Cristo considerava ser Deus encarnado, como diz o dogma cristão, ou mesmo tinha consciência plena de que sua morte na cruz serviria para redimir a humanidade, outra idéia que é central para a cristandade moderna.
O interessante, afirma Chevitarese, é que os textos do Novo Testamento parecem mostrar a convivência de várias visões sobre como e quando os cristãos consideravam que Jesus teria assumido seu status de Cristo, ou seja, de "ungido" (escolhido) e Filho de Deus. “Para Paulo [autor dos textos provavelmente mais antigos do Novo Testamento, datados por volta do ano 50], Jesus é o Cristo porque ressuscitou. O Evangelho de Marcos traz esse papel já para o batismo de Jesus feito por João Batista. Os Evangelhos de Mateus e Lucas recuam isso para o nascimento dele, enquanto João vê Cristo como preexistente ao próprio mundo. São quatro cristologias [visões sobre a natureza de Jesus] diferentes convivendo num espaço de 50, 60 anos.”
Como judeu, seria impensável para Jesus se colocar publicamente como igual a Deus, afirma Luiz Felipe Ribeiro. “Agora, isso não quer dizer que não houvesse uma autocompreensão de Jesus na qual ele se via como mais do que humano, uma autocompreensão messiânica, digamos.” Seria essa uma possível explicação para o misterioso título “Filho do Homem”, aparentemente empregada por Jesus para designar a si mesmo. Esse personagem aparece em vários escritos apocalípticos judaicos, muitos dos quais surgidos pouco antes do nascimento de Cristo. “Mas nem mesmo ali o Filho do Homem é igual a Deus - ele é mais um vice-regente, um segundo em comando”.
Essas incongruências só são conhecidas porque os Evangelhos, apesar da fé religiosa por trás de sua composição, preservam uma trilha de pistas sobre o lado humano de Jesus. Tais pistas fortalecem o chamado critério do constrangimento, uma das principais maneiras de decidir se um fato ou uma fala do Novo Testamento remonta ao Jesus histórico. A idéia é que os evangelistas não inventariam passagens capazes de lançar dúvidas sobre o poder ou onisciência de Jesus.
Reprodução
João Batista e Jesus em quadro renascentista: O caso clássico do critério do constrangimento é o batismo de Cristo por João Batista no rio Jordão, afirma Emilio Voigt, doutor em Novo Testamento e professor da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS). “Se o batismo de João é para o arrependimento [dos pecados], porque Jesus precisaria ser batizado? Como Jesus, o Messias, poderia ser batizado por alguém teoricamente inferior a ele?”. Segundo Voigt, a tradição cristã resolve isso por meio do “testemunho” de João – afirmações do profeta de que ele teria vindo apenas para proclamar a chegada de Jesus e de que, na verdade, não seria nem digno de batizá-lo.
Uma série de outros eventos constrangedores aparecem nos Evangelhos: os parentes de Jesus e os moradores de Nazaré o rejeitam como profeta, ele diz que “somente o Pai” conhece a hora da chegada do Reino, teme a aproximação da morte e, pregado na cruz, pergunta por que Deus o abandonou. Para John P. Meier, o registro de tantas situações potencialmente desencorajadoras sobre Jesus revela que os evangelistas estavam seguindo uma tradição histórica estabelecida e que eles não se sentiam totalmente livres para alterá-la a seu bel-prazer. E esse conservadorismo aumenta, de certa forma, a confiabilidade do "esqueleto" básico de fatos apresentado em tais textos.
Verdadeiro homem, verdadeiro Deus
Levando tudo isso em consideração, a fé cristã pode sair abalada ao confrontar o Jesus histórico? Os especialistas apostam que esse risco é menor do que parece. “A pesquisa histórica ajuda a compreender a atividade de Jesus e a contextualizar a fé. Pode ameaçar alguns dogmas eclesiásticos, mas não a fé propriamente dita”, diz Voigt, que também é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IELCB).
“Creio que o processo de formação das pessoas de fé cristã deve ajudar a perceber a riqueza que se encontra justamente no processo de interpretar os acontecimentos. Não podemos ler a Bíblia ao pé da letra. Como pessoas de fé, nossos antepassados vivenciaram processos muito criativos de leitura dos acontecimentos, atribuindo-lhes significados que, à primeira vista, não eram perceptíveis nem imagináveis. A Bíblia toda foi construída assim”, pondera o padre Léo Konzen.
“Apesar de ser a personificação do Divino, aqui na Terra Jesus era apenas um homem bruto, pobre, tão comum que dependia de muita oração e da ação do Espírito Santo para realizar seus feitos. Seria muito fácil se Ele morresse na cruz tendo a certeza de que era eterno. Mas era homem e, como homem, não tinha uma memória divina”, diz René Vasconcelos, estudante de teologia da Faesp (Faculdade Evangélica de São Paulo) e membro da denominação evangélica Assembléia de Deus.
Essa, aliás, é uma das pedras fundamentais da fé de quase todas as igrejas cristãs: Jesus é verdadeiro Deus, mas também é verdadeiro homem. A primeira parte da frase não pode ser comprovada ou refutada pela pesquisa histórica, mas a segunda metade dela também é capaz de tornar Jesus relevante para crentes – e até para agnósticos ou ateus – durante muito tempo ainda.
Fonte: Globo.com
Um comentário:
Nos dias de hoje, quando se fala em espiritualidade, muitos pensam logo na espiritualidade mística. Esta é uma tendência mundial atual, acho que tem a ver com uma certa mudança sutil que anda em curso no Inconsciente Coletivo e acho também que seria adequado iniciarmos essa postagem com algumas definições anônimas diversas a respeito da Mística: o que é a Mística?
# "É a insistência de que tudo o que é... não é tudo!";
# "É o engajamento na busca do Deus-Mistério";
# "É a experiência de Deus";
# "Místico é tudo aquilo ou aquele(a) que, mediante a contemplação espiritual, procura atingir o estado de êxtase de união direta com a divindade";
# "O místico é alguém que vive do encontro pessoal com Deus";
# "O místico é aquele que aspira a uma União pessoal ou à Unidade com o Absoluto, que ele pode chamar de Deus, Cósmico, Mente Universal, Ser Supremo, etc."...
Faço questão de não citar as fontes dessas definições curtas, porque quando se trata de entender o que é a Mística, não há o que se explicar, não interessa o nome de quem falou, onde está escrito... tudo que nos interessa, nesse caso, é a idéia em si e por si mesma. De qualquer modo, percebemos que as principais interpretações do termo não se excluem, não se anulam entre si, mas se complementam ou se aperfeiçoam.
A via mística está muito em voga nos dias de hoje, e a grande maioria logo pensa em procurá-la no Budismo, no Hinduísmo ou no Sufismo, entre outras tradições orientais. - Eu fui um desses. - Os que anseiam por uma espiritualidade mística, via de regra, nem sequer cogitam buscá-la no Cristianismo, e a “culpa” desse fenômeno, ao meu ver, é em grande parte das próprias igrejas, o que já é uma outra longa história.
Mas a verdade é que a tradição cristã sempre foi caracterizada por fortes correntes místicas. - A Mística estava presente na mensagem do Cristo desde o princípio. - O alemão Karl Rahner, um dos mais importantes teólogos do século XX, proferiu a famosa frase:
"O cristão do futuro será um místico, ou então não existirá mais."
Rahner entende "um místico" como alguém que não apenas "ouviu falar" de Deus ou leu a seu respeito em algum lugar, mas o experienciou, e o percebe, vivenciando-o. Essa é uma bela definição do ser místico.
Quando acentuamos o Caminho Místico no Cristianismo, criamos, ao mesmo tempo, uma ligação com os místicos das outras religiões; pois os representantes da Mística, desde que estejam nesse caminho com uma real disposição e empenhados verdadeiramente na Busca, passam por experiências semelhantes entre si... Esses buscadores, independente da religião que professem, não apenas se respeitam como também se estimam uns aos outros, e não pensam em “converter-se” mutuamente. - E assim interpretam suas experiências cada um a sua maneira. - Há interpretações de fato bem diferentes de uma mesma realidade na Mística cristã, na hinduísta, na budista...
Ocorre que hoje há tão pouca clareza no uso da palavra “Mística” quanto no entendimento do conceito de “espiritualidade”. É muito fácil perceber que não são poucos os que se definem como "místicos" sem saber exatamente o que isso quer dizer. Mas os representantes da verdadeira Mística, em qualquer religião, sempre foram cautelosos quanto a se chamarem a si mesmos de místicos. Relataram suas experiências e o caminho da meditação ou da oração contemplativa, mas nunca sucumbiram ao perigo de se identificar com a imagem arquetípica do "místico".
Agostinho, assim como C. G. Jung, sempre vê na identificação com uma imagem arquetípica o perigo da vaidade. Ele entendeu que, quando não levamos em conta as nossas reais necessidades, nós as vivemos inconscientemente com maior intensidade. Segundo esses mestres, quando alguém se identifica com a imagem do "místico", vive a sua necessidade de ser alguém especial, importante, e muitas vezes o que está por trás desse desejo é a ânsia de ser notado e de se colocar acima dos outros: “Como uma ‘pessoa mística’, me torno mais interessante”... - Este não é um sentimento espiritual saudável.
“Infelizmente, vejo essa tendência hoje, em muitos que se afirmam místicos. Por isso, sempre tomo cuidado quando alguém me pergunta se sou 'um místico'. Estimo o caminho místico e realmente procuro segui-lo; todavia, nunca me chamarei ‘místico’.” - Anselm Grün
Na Mística Cristã há, sobretudo, duas tendências: a Mística da União e a Mística do Amor. Sem dúvida, não se podem separar nitidamente uma da outra; pois a Mística da União está compenetrada de Amor, e na Mística do Amor trata-se da União com o Bem-amado Cósmico. Mas nas duas tendências podemos distinguir alguns acentos diferentes.
Na Mística da União visa-se a experiência do ser puro. Em silêncio, uno-me com Deus. Em silêncio, torno-me Um com Deus e, ao mesmo tempo, um com o momento atual, um comigo mesmo e com tudo que existe. Nessa experiência de União, que na tradição se chama Comunhão, Deus não é mais experimentado como estando diante de nós, mas como fundamento de todo o ser. No Cristianismo, Deus é sempre ao mesmo tempo pessoal e suprapessoal. Não é eliminada a lembrança de Deus como “Vós”, mas ela fica em segundo plano.
A mística grega antiga era, sobretudo, uma Mística de União. O que aí se busca são experiências da Grande Presença. Enquanto estou totalmente neste momento, - o Agora, - totalmente unido com tudo o que existe, experimento, afinal, também a base de todo o ser: Deus, que me compenetra como sendo o Ser verdadeiro e Único. Para muitos que têm dificuldades com o Cristianismo, a Mística da União seria um bom caminho para entrarem novamente em contato com a sua própria base divina e, desse modo, se tornarem abertos para aquele Deus totalmente diferente e ao mesmo tempo tão igual, que não podemos compreender, mas sentir.
Na Mística do Amor trata-se, de um modo bastante feminino, do Amor a Deus que se aproxima da humanidade. A mística do Amor, praticada pelas “beguinas”, - mulheres que, sem pronunciar votos, viviam livremente em grupos espalhados pelos países baixos e Bélgica, na Idade Média (séculos XIII e XIV), - era sobretudo uma mística nupcial. Para elas, Jesus era o "noivo" que abraça a alma mística. Essas místicas falavam sobre suas experiências numa linguagem quase erótica, e nesse processo era muito apreciada a interpretação do "Cântico dos cânticos", livro do Antigo Testamento. - Esses cânticos são utilizados para se expressar o Amor de Deus, e as místicas falam sobre o "namoro divino", em que podiam alegrar-se da proximidade de seu sublime "noivo". Mechthild von Magdeburg refere-se até ao "Leito do Amor", em que ela podia descansar com seu Bem-amado. Nem preciso mencionar o alto grau de intimidade com o Divino que precisamos sentir para exercer uma tal espiritualidade em nossas vidas. - Mas a Mística do Amor também sempre se refere a um “Vós”; a União com o Amado nunca é entendida como "ser a mesma coisa que" ou "ser igual" a Ele. Ser um com Deus é estar nEle, ter o "eu" dissolvido nEle, é estar liberto do ego, dos apegos, das mesquinharias, do medo... em perfeita Harmonia e Liberdade.
O Concílio de Calcedônia, no ano de 451 de nossa era, definiu a União do ser humano com Deus, na experiência mística, como “sem mistura e sem separação”. – Na experiência da União, estamos totalmente unidos com Deus. - Somos uma só realidade com Deus, mas ao mesmo, esse Deus continua impossível de ser conquistado. Não podemos dominá-lo ou tê-lo completamente.
Tanto a Mística da União como a Mística do Amor ensinam que a perfeita União com Deus, neste nosso mundo, ainda não pode ser perene ou permanente. Ela dura um momento e se dissolve. Depois disso, vive-se novamente o estar separado de Deus. Místicos vivem sempre a tensão entre o estar unido e o estar separado, entre integração e dilaceramento. Essa é a razão primeira de existirem as formas religiosas, as práticas, a oração, a liturgia, a meditação... todos esses são elementos do chamado Caminho de Volta, a eterna saga do Filho Pródigo .
Os primeiros monges ascetas sempre se esforçaram por realizar a exortação da Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses: “Orai continuamente”, - I Ts 5:17.
A oração foi e continua sendo para os monges cristãos um caminho concreto para buscar a desejada sintonia divina permanente. A oração era associada com a pulsação do coração, que é sempre contínua, enquanto estivermos vivos. Para eles, mesmo quando a pessoa não está orando conscientemente, é preciso conduzir a vida como se fosse uma grande oração, em todos os seus atos, pensamentos, intenções... Para Agostinho, a "Saudade" era o caminho perfeito para essa oração sem interrupção. Não podemos falar sempre com Deus, nem levantar sempre as mão e nem ficar sempre ajoelhados. Mas a "Saudade" de Deus deveria estar sempre em nós. Orar, para Agostinho, é a arte do despertar em nós a Saudade divina.
“Se não quiseres interromper a oração, então não interrompas a Saudade de Deus. A tua ininterrupta Saudade é a tua voz de oração ininterrupta.” - Sto. Agostinho
Quando estamos em contato com essa sublime Saudade, então nosso coração está com Deus. Na Saudade, Deus gravou o seu vestígio dentro dos nossos corações. Para Agostinho, a mística consiste em manter “acordada” e sempre viva a Saudade de Deus, na qual Ele se mantém presente no coração humano. Quando percebemos em nós essa Saudade, já alcançamos, para além deste mundo, o Mundo de Deus. Assim, temos dentro da nossa alma uma âncora, que nos mantém firmes e nos faz “penetrar além do véu” (Hebreus 6:19).
Curioso é que, séculos depois de Agostinho, Friedrich Nietzsche, um dos maiores inimigos declarados do Cristianismo e da religião, no seu tempo, surpreendentemente colocou de maneira muito similar a relação entre saudade e Mística. Ele declarou que “onde a saudade e o desespero se acasalam, há mística”.
A Mística não é uma espécie de posse, da qual possamos nos orgulhar, ou algo que nos envaideça por essa nossa suposta qualidade de “pessoa mística”. - A verdadeira Mística nasce exatamente no lugar do nosso desespero. Sim. Lá, onde nos desesperamos de nós mesmos, porque nada nos sustenta mais e percebemos que nossa a existência não tem fundamento por si mesma.
Então, se não nos deixamos afundar no desespero, mas o combinamos com a Saudade, aí acontece o “salto” para dentro de Deus: aquele Deus totalmente diferente, no qual não conseguimos ainda nos organizar ou nos acomodar confortavelmente, mas que nos recolhe enquanto, no meio do desespero dessa insaciável Saudade santa, tivermos confiança nEle, entregando-nos ao inalcansável.
Nietzsche inadvertidamente entendeu algo da Mística Cristã, ao combinar saudade com desespero. A Mística não é algo que podemos exigir de nós mesmos. A Mística é, antes, sempre esse salto, do desespero do próprio eu para dentro do Mistério inalcansável e Infinito, que nos acolhe, conforta e ilumina.
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