1.17.2011

Entrevista: Siddhartha Mukherjee

Livro traça a história milenar do câncer - e da guerra contra ele

Considerado um dos melhores livros de 2010 na Inglaterra e nos Estados Unidos, 'O Imperador de Todos os Males' mostra por que a doença se tornou a mais emblemática dos nossos tempos

Aretha Yarak
Siddhartha Mukherjee Inédito: o oncologista Siddhartha Mukherjee é o autor do primeiro livro com a biografia do câncer (Deborah Feingold)
"Para muitos tipos, provavelmente, não vai ser possível encontrar a cura, o que pode ser uma grande frustração para os que fazem disso uma obsessão. Mas, para diversos outros tipos, será possível encontrar meios de tratamento que tornem a doença em um mal crônico, prolongando a vida do paciente em muitos anos."
 
Em 2005, uma paciente com câncer no estômago perguntou ao médico Siddhartha Mukherjee, então residente em oncologia, qual era a origem e qual seria a evolução da doença. A questão deixou o jovem médico desconcertado. "Percebi que não tínhamos nada na literatura que esclarecesse adequadamente o contexto histórico do câncer", relembra Mukherjee, de 40 anos, indiano nascido em Nova Déli que mantém um ar de ator de Bollywood, a indústria de cinema indiana. A conversa com a paciente (ele não revela que destino ela teve) foi a principal inspiração para a criação do livro The Emperor of All Maladies (O Imperador de Todos os Males), que será lançado no Brasil em agosto, pela editora Companhia das Letras - depois de ser considerado um dos melhores lançamentos de 2010 nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Em quase 500 páginas, Mukherjee, agora oncologista da respeitada Universidade de Columbia, traça o que ele chama de biografia da doença. Do período em que o câncer ainda não era conhecido como tal, surgem as figuras de Imhotep, Hipócrates e Heródoto, personalidades que fizeram as primeiras descobertas conhecidas sobre a doença. “Infelizmente, os tecidos das múmias que encontramos até hoje não chegaram até nós suficientemente preservados. Então, tudo o que sabemos sobre esse período são suposições a partir de sinais do que podem ter sido um tumores”, diz o especialista. O livro traça perfis daqueles que contribuíram para o avanço no diagnóstico e no combate à doença, e descreve os desafios científicos que enfrentaram em suas respectivas épocas. Com isso, ajuda a entender por que a doença se tornou a grande praga da modernidade. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o futuro do câncer, sua descrença na descoberta de uma cura universal e a simultânea esperança de que, em muitos casos, ele se torne uma doença crônica.
divulgação
The emperor of all maladies
 
Por que uma "biografia" do câncer? Parece incrível, mas, apesar de a doença ser tão comum hoje, não houve interesse por parte de outros autores em escrever um livro a respeito de sua história. Eu comecei a escrevê-lo quando estava fazendo a residência em oncologia, em 2005, e uma paciente que tinha câncer de estômago me perguntou qual seria o futuro da doença - não a sua em particular, mas a doença em geral. Eu não tinha como responder a ela, e não tinha nada na literatura que esclarecesse adequadamente o contexto histórico do câncer.
Seu livro demonstra que, ao longo da história humana, o câncer não era apenas pouco conhecido, mas de fato raro. Por quê?  Se percorremos a história em busca de menções a doenças, descobrimos que muitos males com os quais ainda convivemos são mencionados em textos da Antiguidade. Isso não acontece com o câncer, e o motivo principal é que as pessoas não viviam o suficiente para que a doença se manifestasse de maneira significativa nas populações. A relação do câncer com a longevidade é direta. Quanto mais vivemos, maiores são os riscos de surgimento da doença. Para certos tipos de tumor, o risco aumenta de maneira exponencial. O mesmo ocorre, aliás, com o Alzheimer e outras demências. Há quem diga que a civilização e a modernidade aumentaram a incidência do câncer. De fato, a vida moderna nos pôs em contato com um número considerável de novos agentes carcinogênicos. Mas, se pesarmos tudo na balança, o motivo mais importante ainda é o fato de nos tornarmos cada vez mais longevos. Ao ampliar nosso horizonte de vida, a civilização não causou o câncer, mas permitiu que ele se manifestasse.
Mas o câncer infantil também é mais recorrente hoje. A leucemia, por exemplo, é mais comum em crianças. De fato, alguns tipos de câncer não têm vínculo com a velhice. Mas esses são tipos mais raros, a leucemia entre eles. A leucemia é muito menos comum, por exemplo, do que o câncer de mama, associado à velhice. Temos de levar em conta também a questão do diagnóstico. Os antigos eram tão familiarizados com a tuberculose que dispunham de várias palavras para descrever seus estágios e manifestações, mas muitas doenças que hoje classificamos como câncer não eram assim definidas no passado. A leucemia não em seria chamada de câncer, e isso pode influenciar diretamente na impressão que temos de que o número de casos está aumentando.
Mirian Silva
Linha do tempo do câncer
 
Qual foi o primeiro caso de câncer? Não sei a resposta a essa pergunta. Esqueletos de hominídeos ancestrais têm sinais do que poderia ser um câncer, mas por ora são só indícios, não sabemos com certeza. Múmias que chegaram até nós também apresentam sinais de tumores, mas o estado dos tecidos não nos permite concluir nada. A descrição médica mais antiga de que se tem conhecimento data de 2500 a.C. e é atribuída ao sacerdote egípcio Imhotep. O documento que chegou até nós surpreende pela maneira objetiva como descreve 48 casos médicos. O caso 45 descreve uma "massa protuberante no seio" com riqueza de detalhes. Estamos, quase com certeza, diante do diagnóstico de um tumor de mama.
Como uma doença sem nome se transformou em câncer? Hipócrates foi a primeira pessoa, até onde sabemos, a usar uma palavra similar a câncer e a começar a definir de fato a doença tal qual a conhecemos hoje. Foi ele quem concebeu a imagem de um tumor como uma espécie de caranguejo enterrado sob a pele. Mais uma vez, é bem provavel que olhasse para um câncer de mama. Seguindo a mesma visão, as veias sanguíneas ao redor do tumor seriam similares às pontas da carapaça e às patas do animal. Já para Hipócrates, o corpo humano era formado por quatro fluidos: bílis negra, bílis amarela, sangue e fleuma. O grego Cláudio Galeno, que acreditava nessa teoria, achava que o câncer era a exacerbação de um desses fluidos, a bílis negra. Essa associação pode ter surgido pela observação do melanoma. Essa associação entre o câncer e a bilis negra perdurou até o século XIX, que é o momento em que o estudo do câncer, patologicamente falando, se configurou de fato.
Por que se demorou tanto para entender o câncer? Não tínhamos, e na verdade ainda não temos, a tecnologia necessária para compreender esa doença e tratá-la. A quimioterapia tem cerca de 50 anos. O estudo dos genes que causam o câncer ainda está na infância. E o que sabemos sobre química não basta para encontrarmos moléculas que ataquem as células cancerígenas sem devastar o corpo.
 
Por que ainda não há tratamentos mais eficientes do que a quimioterapia e a radioterapia? Pelo motivo que acabo de mencionar.  Para criar um tratamento mais eficiente, é preciso encontrar drogas que matem apenas as células cancerígenas e poupem as sadias. Esse é o real desafio. Neste momento, avanços muito significativos estão ocorrendo no tratamento de algumas formas de leucemia. Mas é muito, muito difícil desenvolver drogas assim.
O aparecimento dos antirretrovirais abriu um novo capítulo na história da aids, aumentando a sobrevida dos pacientes. O senhor imagina algo similar com o câncer? Os pacientes com câncer hoje estão vivendo bem mais do que os pacientes com aids. É importante entender que o câncer não é uma doença, mas diversas doenças, sendo todas bem diferentes entre si. Para o futuro, acredito que o caminho é a descoberta de novas maneiras de prevenção ou, quando isso não for possível, de converter o câncer em doença crônica. Para muitos tipos, talvez simplesmente não seja possível encontrar a cura. Por que o câncer está intrinsecamente ligado ao processo biológico de reprodução das nossas células. Às vezes o processo de crescimento descontrolado das células que chamamos de câncer tem origem numa mutação causada por um agente cancerígeno, mas em muitas outras situações a causa parece ser uma mutação aleatória, ocorrida no processo normal de cópia de genes quando nossas células se reproduzem. Nossas células se dividem, envelhecemos, mutações se acumulam inexoravelmente sobre mutações e, nesse sentido, a longo prazo, talvez seja impossível desconectar o câncer de nossos corpos. Mas, se a morte é inevitável, morrer cedo não é. Para diversos outros tipos, será possível encontrar meios de tratamento que tornem a doença em um mal crônico, prolongando a vida do paciente em muitos anos. Talvez seja esse o significado de vencer a guerra contra o câncer.
Há muitas metáforas para falar do câncer, por exemplo, a que o descreve como praga. O senhor concorda com esse modo de falar? O problema das metáforas, é que muitas vezes elas trazem um estigma para as pessoas atingidas pela doença. Mas, numa perspectiva histórica, faz sentido pensar no câncer dessa maneira. Se definirmos uma praga como uma doença com implicações biológicas, sociológicas, culturais e políticas, então o câncer se enquadra na categoria, da mesma forma como a peste negra ou a tuberculose ocuparam tal posição em séculos passados. Nos Estados Unidos, uma em cada três mulheres e um em cada dois homens terá um diagnóstico de câncer em suas vidas.

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