11.06.2008

Dependência alcoólica (Alcoolismo): Fatores de risco, sintomas, diagnóstico, consequências e tratamento


Dependência alcoólica

Fatores de risco, sintomas, diagnóstico, consequências e tratamento da dependência alcoólica ou alcoolismo.


Como se define a dependência alcoólica?

A dependência alcoólica ou alcoolismo é uma doença, frequentemente crónica e progressiva, que se caracteriza pelo consumo regular e contínuo de bebidas alcoólicas, apesar da recorrência repetida de problemas relacionados com o álcool.

Quais são os fatores de risco?

História familiar relacionada com o alcoolismo;
Ambiente sociocultural. A integração em famílias ou em meios sociais propensos ao consumo de álcool (ter de frequentar festas, reuniões sociais, etc.);
Situações imprevisíveis de rotura na vida quotidiana;
Distúrbios emocionais – pessoas deprimidas ou ansiosas;
Conflitos entre os pais, divórcio, separação ou abandono, de um ou de ambos os progenitores;
Dificuldades de adaptação à escola;
Dificuldades de aprendizagem.

Como é que se fica dependente do álcool?

O processo de dependência do álcool desenvolve-se como o de qualquer outra dependência, como por exemplo em relação ao tabaco, às drogas e outras substâncias psicoactivas.

Começa-se por experimentar beber, depois bebe-se pontualmente e daí passa-se a beber com regularidade, até criar dependência. Para algumas pessoas é um processo relativamente rápido.

Quais são os sintomas da dependência alcoólica?

Sentir grande necessidade de consumir bebidas alcoólicas;
Incapacidade para controlar o consumo, seja o início, o fim ou os níveis de consumo;
Síndrome de abstinência – estado de abstinência fisiológica quando se para ou reduz os consumos;
Tolerância ao álcool;
Abandono progressivo de interesses alternativos em favor do uso da substância;
Persistência no uso da substância, apesar da evidência de consequências manifestamente nocivas.
Deve, pois, estar atento aos seguintes comportamentos e sintomas:

Se bebe muito em ocasiões sociais;
Se tem episódios de amnésia ou blackouts frequentes – quando, no dia a seguir, acorda sem nenhuma memória ou recordação da noite anterior ou de ter ingerido álcool em excesso;
Se utiliza subterfúgios para esconder a bebida alcoólica, como usar garrafas ou embalagens de bebidas não alcoólicas ou esconder as garrafas para que ninguém à volta perceba;
Se se irrita e se torna agressivo verbalmente, com declarações de rejeição da dependência da bebida ou mesmo que deixou de beber de uma vez por todas;
Se tem medos, comportamentos obsessivos, sentimentos de perseguição contra si próprio ou ciúmes em relação ao cônjuge;
Se sente cansaço, insónias, disfunções sexuais, depressão, ansiedade;
Se ocorrem fracturas, quedas, queimaduras no corpo ou mesmo convulsões sem causa aparente.

Como se diagnostica?
Após avaliação clínica do indivíduo pelo médico assistente ou de família, será orientado para uma consulta de alcoologia.

Há pacientes que, quando são avaliados, têm dificuldade em relatar os sintomas físicos e psicológicos, porque sofrem já de défice de memória e não conseguem recordar-se de tudo o que fizeram, ou têm negação para a doença.

Quando o paciente admite o problema ligado ao álcool é, normalmente, sinal de melhor adesão ao tratamento.

Quais são as consequências, físicas e mentais, da dependência severa do álcool?

Dependem da duração da dependência e das quantidades de álcool ingeridas. As pessoas com dependência severa do álcool podem padecer de:

Desnutrição;
Alterações sanguíneas – ao nível dos glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas;
Esofagites;
Gastrites;
Úlcera péptica;
Pancreatite crónica ou crises de pancreatite aguda;
Esteatose hepática;
Hepatite alcoólica;
Cirrose hepática;
Hipertensão arterial;
Cardiomiopatia alcoólica;
Acidentes vasculares cerebrais;
Alterações endócrinas e metabólicas;
Alterações musculoesqueléticas - como a osteoporose;
Alterações dermatológicas;
Maior prevalência de tuberculose e de infecções bacterianas;
Maior prevalência de cancros a nível de todos os órgãos;
Síndrome de abstinência;
Delirium tremens;
Síndrome de Wernicke;
Síndrome de Korsakov;
Demência alcoólica.

O que é a síndrome da abstinência?

É uma consequência da interrupção ou redução súbita do consumo excessivo de álcool. Resulta das alterações que ocorrem no sistema nervoso central pela activação excessiva do sistema neurovegetativo. Quer dizer que não se deve reduzir os consumos ou parar de beber? Não, pode-se e deve-se, mas com ajuda de medicação indicada pelo médico.

Esta síndrome caracteriza-se, fundamentalmente, pela ocorrência de ansiedade, irritabilidade, tremores, suores, náuseas, aumento da pulsação cardíaca, taquicardia, insónia, febre, entre outros sintomas.

Em geral, os primeiros sintomas da abstinência ocorrem durante as 24 horas que se seguem à última bebida ingerida. O pico é atingido entre as 36 e as 48 horas depois e, a partir daí, os sintomas começam a decrescer, acabando, em média, ao final de cerca de cinco dias.

Nas situações mais severas, o indivíduo pode ter convulsões, alucinações e entrar em delirium tremens.

O que é o delirium tremens?

Caracteriza-se por forte agitação, delírios e alucinações extremas (visuais, auditivas e tácteis), podendo, por vezes, ser também acompanhado de febre e convulsões (do tipo da epilepsia). Entre cinco a dez por cento dos alcoólicos que entram no estádio de delirium tremens acabam por falecer.

Como se trata o alcoolismo ou dependência alcoólica?

O tipo e a duração do tratamento variam em função do grau de dependência e do estado de saúde geral do doente.

Quanto mais cedo o problema do alcoolismo for diagnosticado, maiores são as probabilidades de sucesso do tratamento e da recuperação.

Requere-se o uso de medicação, sobretudo na fase aguda de abstinência, e apoio para manutenção dessa abstinência, com vigilância médica, podendo incluir medicamentos que reduzem a vontade de beber, e também psicoterapias estruturadas individuais ou em grupo, movimentos de auto-ajuda e de antigos bebedores que desempenham um papel fundamental no tratamento e na recuperação dos pacientes com sintomas de dependência do álcool.

Há medicamentos para tratar o alcoolismo que são normalmente usados durante os primeiros dias da desintoxicação e que se destinam a ajudar o doente a passar a fase aguda da abstinência do álcool e outros que se destinam a ajudar o doente a manter-se sóbrio e a evitar recaídas.

A participação em programas de recuperação e em grupos de auto-ajuda também constitui um apoio muito importante para a recuperação e para o bem-estar do alcoólico.

O alcoolismo ou dependência alcoólica tem cura?

Como doença crónica que é não tem cura. A única forma de estar controlado é a manutenção da abstinência.

Um alcoólico pode manter-se sóbrio por um longo período de tempo, mas isso não significa necessariamente que esteja curado. O risco de recaída mantém-se.

Fonte: Portal da Saúde


O uso de bebidas alcoólicas é tão antigo quanto a própria humanidade. Beber moderada e esporadicamente faz parte dos hábitos de diversas sociedades. Determinar o limite entre o beber socialmente e o alcoolismo (síndrome de dependência do álcool) é por vezes difícil de ser determinado. O problema se torna evidente quando o indivíduo passa a consumir bebidas alcoólicas diariamente. Já existe uma estimativa de que a pessoa corre sério risco de desenvolver cirrose hepática se beber 80 gramas de álcool por dia, durante aproximadamente 10 anos. A mulher, que é mais sensível e corre o mesmo risco com metade dessa dose.


Para exemplificar o Prof. Luís Caetano cita a cerveja, bebida bastante divulgada e consumida no Brasil. Vamos admitir que cada garrafa (600 ml) tenha, em média 4% a 5% de álcool. Logo, três garrafas e meia de cerveja perfazem os 80 gramas de álcool. Se considerarmos que o teor alcoólico da pinga, do uísque e da vodca é dez vezes maior do que o da cerveja dá para imaginar o que acontece. Um copo de qualquer uma dessas bebidas corresponde a 64 gramas de álcool, portanto beirando o limite que, na maioria dos casos, leva à cirrose que é uma doença que evolui invariavelmente para o óbito.

O grande problema é que ninguém duvida de que tomar uma caipirinha ou uma cerveja, de vez em quando, é agradável. A coisa complica com a repetição em todo fim de semana que pode levar à dependência, sobretudo nos indivíduos com história familiar de alcoolismo. Também não faz diferença o tipo de bebida escolhido, pois o que conta é a quantidade de álcool ingerida diariamente ou quase todos os dias. Por outro lado, se houver predisposição genética, mesmo em quantidades menores o álcool pode provocar cirrose hepática.

Efeitos Deletérios do Álcool

O uso excessivo de bebidas alcoólicas pode afetar praticamente todos os órgãos e sistemas do organismo. O aparelho gastrintestinal é particularmente atingido. Além das lesões do fígado que leva o paciente lentamente à morte, podem ocorrer gastrites, úlceras, inflamação do esôfago e pancreatite aguda que é um quadro clínico grave.

Outros aparelhos atingidos: o cardiocirculatório (hipertensão arterial, arritmias), o sistema nervoso central (disfunções motoras), periférico (neuropatias periféricas) e sistema geniturinário (atrofia de testículos com impotência e perda da libido).

Nas mulheres o álcool afeta a produção hormonal, levando a diminuição da menstruação, infertilidade e alterações das características sexuais femininas.

Em mulheres grávidas, sabe-se que o álcool atravessa a barreira placentária e pode provocar desde abortamentos espontâneos, natimortos, além da temida síndrome fetal do alcoolismo constituída por um ou mais defeitos congênitos, tais como: malformações no coração, membros, crânio e face. Também baixo peso ao nascer e grande dificuldade em aumentar de peso e estatura além de retardo mental.

A anemia é bastante comum nos alcoólatras o que pode ser causado por desnutrição e deficiência de vitaminas e de ácido fólico.

As lesões vão surgindo lentamente e, quando o indivíduo é alertado pelo médico, muitas vezes já está com cirrose hepática ou com outros problemas graves de saúde.

Síndrome de Dependência


A dependência se manifesta através da modificação no comportamento do indivíduo, tais como: falta de diálogo com o cônjuge, freqüentes explosões temperamentais, perda do interesse na relação conjugal, comportamento irritável, habituais faltas ao trabalho sem justificativa plausível e ocorrência de acidentes automobilísticos. Tais situações indicam o sinal de alerta de que o indivíduo já perdeu o controle da bebida e pode estar travando uma luta solitária para diminuir o consumo do álcool, embora na maioria dos casos as iniciativas pessoais resultem em fracassos.


O Prof. Ronaldo Laranjeira, médico psiquiatra da Unidade de Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP, estabelece os seguintes critérios para o diagnóstico dessa síndrome:

· Intervalos mais curtos de beber: No começo a pessoa bebe com certa variabilidade. A medida que fica mais dependente, começa a beber todos os dias, e o padrão se torna estereotipado, ou seja, começa a beber todos os dias, na hora do almoço e à noite;
· Realce do comportamento de busca do álcool: O indivíduo tenta dar prioridade ao ato de beber ao longo do dia, mesmo em situações socialmente inaceitáveis (por exemplo, no trabalho, dirigindo veículos, quando está doente, etc.);
· Aumento da tolerância (resistência) ao álcool: Aumento da dose para obter o mesmo efeito, ou seja, o organismo exige doses cada vez maiores para repetir a sensação de bem estar;
· Sensação subjetiva de necessidade de beber: Existe pressão subjetiva para beber. Este sintoma foi atribuído no passado a uma compulsão. Atualmente, considera-se como tendência psicológica a buscar alívio dos sintomas de abstinência;
· Alívio ou fuga dos sintomas de abstinência pelo beber: Este sintoma fica muito claro na fase mais grave da dependência - a pessoa bebe pela manhã para sentir-se melhor. Esta particularidade, em que ela sente-se melhor com o uso de álcool, pode também estar presente na fase inicial da dependência, embora o paciente não atribua isso à dependência;
· Síndrome de abstinência: Se o consumo de álcool diminuir ou for interrompido subitamente aparecem sintomas físicos e psíquicos de abstinência. Na fase inicial da dependência, os sintomas de abstinência (ansiedade, insônia e irritabilidade) são leves e intermitentes e causam pouca incapacidade, por isso o paciente pode não atribuí-los como um sinal de dependência ao álcool. Nas fases mais graves da dependência os sintomas de abstinência são mais marcantes, tais como: tremores, sudorese, aumento da pulsação, náuseas, vômitos, insônia, agitação, ansiedade. Nesses casos mais graves podem ocorrer convulsões e as manifestações clínicas do chamado "Delirium Tremens". Esta é uma forma mais intensa e complicada da abstinência alcoólica. É considerado um quadro psiquiátrico grave que necessita de tratamento hospitalar. Caracteriza-se por um estado de confusão mental. O paciente não consegue conversar, confunde objetos e pessoas, não sabe informar sobre datas ou local onde se encontra, não consegue prestar atenção em nada. Um traço comum no "Delírium Tremens", mas nem sempre presente, são as alucinações táteis e visuais em que o doente "tem visões" de insetos (baratas, formigas...) ou animais asquerosos (ratos, cobras...), próximos ou junto ao seu corpo. Esse tipo de alucinação pode levá-lo a um estado de agitação violenta para tentar livrar-se dos animais que o atacam. Cabe ao profissional de saúde fazer o diagnóstico da síndrome de abstinência, o seu tratamento bem como das complicações clínicas e psiquiátricas associadas. O manejo clínico desses quadros clínicos é fundamental no tratamento da dependência do álcool e representa uma oportunidade para motivar o paciente a permanecer no tratamento.
· Reinstalação da síndrome após abstinência: Após período de abstinência que pode ser de dias ou meses, assim que o indivíduo volta a beber, em curto espaço de tempo ele passa a beber no mesmo padrão de dependência anterior.

Fenômeno da Dependência

O fenômeno da dependência obedece a dois mecanismos básicos: o reforço positivo e o reforço negativo. O positivo refere-se ao comportamento de busca do prazer, ou seja, quando algo é agradável o indivíduo busca os mesmos estímulos para obter a mesma satisfação. O reforço negativo refere-se ao comportamento de evitar o desprazer, ou seja, numa dada circunstância quando algo é desagradável o indivíduo procura os mesmos meios para evitá-los. A fixação de uma pessoa no comportamento de busca do álcool obedece a esses dois mecanismos. No começo a busca é pelo prazer que a bebida proporciona. Depois de um período, quando a pessoa não alcança mais o prazer obtido anteriormente, não consegue mais parar porque sempre que isso é tentado surgem os sintomas desagradáveis da abstinência e para evitá-los ela mantém o uso do álcool.

Atualmente há medicamentos modernos que podem ajudar a manter a abstinência, os quais devem ser prescritos e acompanhados pelo médico. Esses medicamentos atuam sobre tais mecanismos: a Naltrexona inibe o prazer dado pelo álcool, impedindo o reforço positivo; o Acamprosato diminui o mal estar causado pela abstinência, bloqueando o reforço negativo.

Fenômeno da Tolerância

O grande problema do consumo do álcool é que no início seu efeito é agradável. Vimos que o organismo cria tolerância (resistência) e exige doses cada vez maiores para repetir a sensação de bem estar. Certo grau de embriaguez é a reação normal do organismo posto em contato com o álcool, entretanto todos conhecemos pessoas que bebem quantidades enormes e aparentemente não se abalam. Essa resistência à ação do álcool é o primeiro passo para que o alcoolismo se instale e o fígado entre em processo de deterioração. O alcoólatra não pode dizer que não está tolerante ao álcool por apresentar sistematicamente um certo grau de embriaguez. O critério não é a ausência ou presença de embriaguez, mas a perda relativa do efeito da bebida. A tolerância ocorre antes da dependência. Os primeiros indícios de tolerância não significam necessariamente dependência, mas é um sinal claro de que ela não está longe. A dependência é simultânea à tolerância. Em outras palavras, a dependência será tanto mais intensa quanto maior for o grau de tolerância ao álcool. Diz-se que o indivíduo tornou-se dependente do álcool quando ele não tem mais forças por si mesmo para interromper ou diminuir o uso do álcool. Neste estágio há um abandono progressivo dos interesses, atividades e prazeres pessoais, ficando a vida cada vez mais direcionada à bebida. A maior parte do tempo do indivíduo passa a ser ocupada com a busca e consumo da bebida. Ele continua bebendo apesar das evidências claras dos prejuízos físicos, psicológicos, familiares e sociais que vem sofrendo.

Aspectos Gerais do Alcoolismo

A identificação precoce do alcoolismo geralmente é prejudicada pela negação dos pacientes quanto à sua condição de alcoólatras. Além disso, nos estágios iniciais é mais difícil fazer o diagnóstico, pois os limites entre o "uso social" e a dependência nem sempre são bem definidos.

Nos casos de dúvidas quanto ao diagnóstico, devem-se sempre avaliar incidências familiares de alcoolismo porque se sabe que a carga genética predispõe ao alcoolismo. O alcoólatra de "primeira viagem" sempre tem a impressão de que pode parar quando quiser e não é raro se ouvir a expressão: "quando eu quiser, eu paro". Essa frase geralmente encobre o alcoolismo incipiente e resistente porque ele próprio nega qualquer problema relacionado ao álcool, mesmo que as outras pessoas não acreditem. A negação do próprio alcoolismo, quando ele não é evidente ou está começando, é uma forma de defesa da auto-imagem (aquilo que a pessoa pensa de si mesma), até porque sabemos que a semelhança da maioria dos diagnósticos mentais, o alcoolismo possui um forte estigma social, e os pacientes tendem a evitar esse estigma. Esta defesa natural de preservação da auto-imagem e conseqüentemente da auto-estima acaba trazendo atrasos ao início do tratamento do alcoolismo, vez que para isso é necessário que o paciente preserve sua auto-estima em níveis elevados, sem contudo negar sua condição de alcoólatra. Para se atingir tais condições, é indispensável orientação psiquiátrica adequada na condução de cada caso em particular.

Aspectos Biológicos do Alcoolismo

Tradicionalmente o alcoolismo e a dependência química têm sido considerados pelos psiquiatras como o "patinho feio" da especialidade, pois no passado eles admitiam o falso conceito popular de que o alcoolismo é um problema relacionado à força de vontade. Os alcoólatras seriam pessoas fracas, provavelmente degeneradas, que não teriam força suficiente para resistir ao prazer envolvido com o ato de beber. Dessa forma, a condução do tratamento da dependência química durante um certo tempo se tornou "terra de ninguém" que incluía várias categorias de pessoas, tais como: dependentes recuperados, pessoas bem e mal intencionadas (charlatões). Dessa maneira, não é de se estranhar que uma grande quantidade de mitos tenha proliferado no campo da dependência química. Entre eles, podemos citar a visão moral da dependência química, a ausência de recuperação, a necessidade de "fundo de poço", para que se pudesse dar início a um tratamento com possibilidade de recuperação e o conceito de que qualquer tipo de recaída poria tudo a perder.

Estes mitos não só carregam um grande estigma para o paciente dependente, mas também dificultam a sua recuperação, pois atuam diretamente na auto-estima e na motivação. Felizmente, a evolução científica tem trazido uma nova luz para a ciência da dependência química e nos últimos vinte anos estudos realizados têm evidenciado que a dependência química é também um quadro cerebral, além de um transtorno psicológico e social. Existem evidências de que o cérebro está profundamente afetado nas alterações causadas pelo uso de drogas psicoativas. O sistema de recompensa cerebral, que envolve os neurotransmissores (dopamina e endorfina), parece ficar ativado de forma específica pelo álcool, cocaína, anfetaminas, opióides e canabióides, de modo que, após o início do uso regular dessas drogas, o processo de dependência química segue o seu percurso bastante independente da vontade individual.

Estes estudos têm trazido resultados práticos muito importantes, dentre eles o novo enfoque de ver a dependência química como uma doença crônica, o aparecimento de formas de psicoterapia comportamental mais específicas para abordagem da dependência química, bem como o surgimento de medicamentos modernos para o tratamento da dependência do álcool, tabaco e heroína.


Estratégias do Tratamento

O tratamento do alcoolismo é bastante complexo e depende do tipo de quadro que o paciente apresenta. Em termos genéricos, o primeiro passo é a motivação do paciente. Também essa motivação para mudança do comportamento vai depender essencialmente de um trabalho profissional do médico para atingir esse objetivo. Dessa maneira não se pode classificar os pacientes em motivados, onde o tratamento se aplica, e não motivados, em que nada se pode fazer.


Ao contrário, existem vários estágios entre esses dois extremos e o papel do médico psiquiatra é ajudar o paciente a se motivar ao tratamento, ou seja, induzi-lo a querer tratar-se, vez que a vontade de parar é o primeiro passo importante para o tratamento. Isso só é possível com o entendimento do processo de mudança que começa com o estado de pré-contemplação, no qual o paciente ainda não reconhece os problemas que a bebida lhe causa e não planeja mudar seu comportamento. Nesta fase não seria efetivo aconselhar o paciente apenas a mudar o hábito ou os lugares que freqüenta. Antes ele precisa se dar conta dos riscos de continuar bebendo. Um modo de ajudar o paciente neste estágio é fazer com ele um quadro dos riscos e benefícios de usar a substância alcoólica. O estágio seguinte é o de contemplação onde o paciente está conseguindo avaliar, de forma mais clara, os custos e benefícios de usar a bebida e já considerar a hipótese de mudar o seu comportamento. Nesta fase o médico pode ajudá-lo a avaliar quais situações o deixam mais suscetível a beber e encontrar uma estratégia para evitá-las ou enfrentá-las de forma eficiente. A fase seguinte é da ação, quando o paciente já se decidiu pela mudança do comportamento e alterações concretas, podem ser feitas mediante a interrupção total do uso de bebidas alcoólicas (abstinência). A chamada "desintoxicação" pode ser feita em casa ou, em casos mais graves, em hospital, mas sempre sob cuidado médico. Nesse período é fundamental um exame médico completo com solicitação de exames laboratoriais, com especial atenção para o fígado e sistema nervoso a fim de avaliar os danos físicos e mentais decorrentes do álcool. A dosagem sanguínea das transaminases é um exame importantíssimo e barato que permite diagnosticar doenças do fígado em fase relativamente precoce. O ideal seria solicitar as transaminases (TGP e TGO) e a Gama GT. Este último exame é importante para avaliar as condições em que se encontra o fígado de quem bebe.

O próximo estágio de mudança é o da manutenção da abstinência. O paciente já parou o consumo do álcool, fez mudanças concretas no comportamento e agora reúnem-se estratégias para ele não recair, ou seja, manter-se abstinente. A maioria dos estudos mostra que a abstinência deve ser total e completa. Uma "bebidinha" de vez em quando abre caminho novamente para a recaída na grande maioria dos casos. Assim é preciso muito esforço e apoio, com envolvimento do cônjuge e demais familiares, para que o paciente fique distante das bebidas alcoólicas e de outros produtos que contem álcool. De fato, se existe um cônjuge ou uma família, o prognóstico é melhor e o trabalho com ambos os cônjuges - individual e conjuntamente - deve começar prontamente. Contudo é importante salientar que estes estágios de mudança de comportamento em relação ao consumo do álcool não são lineares, ou seja, o paciente ao longo do tratamento flutua entre esses estágios podendo ocorrer recaídas que não devem ser interpretadas como retorno ao estágio zero. As experiências anteriores do paciente podem representar aprendizados que o ajudam a voltar à abstinência. A cada recaída o paciente pode voltar a qualquer estágio do processo de mudança.

A psicoterapia comportamental desempenha papel fundamental na recuperação. Procura buscar com o paciente os motivos que o levam a beber e auxiliá-lo na resolução dos conflitos objetivando a construção de uma personalidade mais madura e capaz de lidar com as adversidades sem precisar se refugiar na bebida.

Os grupos de auto-ajuda também desempenham um papel muito importante na recuperação, sendo recomendável matricular o paciente nos Alcoólatras Anônimos (AA) e o cônjuge no "Al-Anon". Não se deve subestimar a importância da religião, particularmente por ser o alcoólatra uma pessoa dependente e que necessita de muito suporte. O aconselhamento religioso quer por sacerdote católico ou por pastor evangélico poderá também contribuir significativamente para o sucesso do tratamento.

Recaída

A taxa de recaída (voltar a beber depois de ter se tornado dependente e parado com o uso de álcool) é muito alta. Quando nenhum tratamento de acompanhamento é feito cerca de 90% dos pacientes voltam a beber nos quatro anos seguintes a interrupção, daí a importância de um acompanhamento terapêutico em longo prazo. A semelhança com outras formas de dependência como a nicotina, tranqüilizantes, estimulantes, etc, levam a crer que há um mecanismo psicológico (cognitivo) em comum. O dependente que consiga manter-se longe do primeiro gole terá mais chances de evitar a recaída. O aspecto central da recaída é o chamado "craving", palavra da língua inglesa sem tradução para o português que significa uma intensa vontade de voltar a consumir uma droga pelo prazer que ela causa. O "craving" é a dependência psicológica propriamente dita.

Violência Doméstica e Abuso de Álcool e outras Drogas

O uso de drogas (álcool, cocaína, anfetaminas...) freqüentemente desinibe o comportamento do indivíduo, reduzindo o controle sobre os impulsos emocionais e aumentando os sentimentos persecutórios. Por essa razão freqüentemente o uso de tais substâncias está relacionado a episódios de violência doméstica.


Estudos estatísticos mostram que 92% dos casos registrados de violência doméstica estão ligados ao uso do álcool. Em relação à violência sexual, estima-se que o alcoolismo estar envolvido em 50% dos casos.

As formas de violência doméstica afetam não somente os cônjuges, mas também as crianças e os idosos, influenciando o bem estar físico e psicológico de toda a família. Ênfase na identificação e no desenvolvimento de estratégias eficazes de abordagem de ambos os problemas (violência doméstica e uso de substâncias) pode contribuir para a redução da violência e de seu impacto sobre a saúde das próximas gerações.

A associação entre violência e uso de drogas tende a complicar e impor desafios adicionais no tratamento de mulheres que sofrem de ambas condições. Geralmente as mulheres com histórico de violência doméstica têm maior dificuldade em confiar em outras pessoas, incluindo profissionais de saúde. A habilidade do clínico em romper esta barreira é crítica para o estabelecimento de uma relação profissional efetiva.

O profissional de saúde deve primeiro garantir a segurança da paciente, fornecendo informações sobre o acesso às delegacias dos direitos da mulher, devendo contudo evitar a confrontação direta com o companheiro violento, já que essa abordagem pode acarretar o aumento da agressividade e dos ataques contra a vítima. O período que se segue a um episódio de violência é oportuno para se romper o ciclo através do encaminhamento para tratamento do dependente em clínicas especializadas com psiquiatras e/ou psicólogos, conforme a necessidade. A sugestão de tratamento pode ser mais bem recebida pelo dependente de drogas nesse momento em que se encontra invadido por sentimentos de culpa e renova promessas de mudança.

É importante ter em mente que ambas condições (violência doméstica e uso de substâncias) têm caráter crônico, com recaídas freqüentes. Conseqüentemente o processo de mudança é complexo e demorado, exigindo estratégias eficazes de abordagem de ambos problemas.

A paciente deve ser encorajada a participar das reuniões de grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos-AA e Narcóticos Anônimos-NA ou Al-Anon e Nar-Anon para familiares, ou Mulheres que Amam Demais Anônimas-MADA envolvidas em relações abusivas). É recomendável que o profissional de saúde esteja familiarizado com esses grupos disponíveis na comunidade.

Dependência às Drogas na Adolescência

O entendimento dos fatores de risco e das características do uso de drogas (não esquecer que o álcool também é uma droga) entre os jovens poderia auxiliar na prevenção do vício. Uma questão fundamental na adolescência é o distanciamento do jovem do contexto familiar e a conseqüente individualização de sua conduta que passa a agir por conta própria em relação à família. O estresse e a ansiedade advindos dessa fase da vida aumentam a vulnerabilidade dos adolescentes à pressão dos amigos. Se por um lado ganham autonomia em relação a seus pais, por outro lado adquirem uma forte aliança com seus colegas. Nesse movimento, a influência do grupo e a "modelagem", isto é, a imitação de determinado padrão de comportamento a partir de um líder, torna o adolescente especialmente vulnerável. Comportamentos de risco fazem parte do processo e geralmente vêm associados a sentimentos de grandiosidade e de "onipotência juvenil", que induzem a negação do potencial de perigo inerente a tais comportamentos. Assim, o adolescente se questiona e tende a se adaptar aos modelos de comportamento "adulto" de que dispõe, sendo o uso de álcool, tabaco e outras drogas, apenas mais um dentre vários modelos. É o caso dos jovens que bebem sem responsabilidade, entrando nas baladas para se firmarem perante aos demais de seu grupo e dai para consumir outras drogas é apenas um passo a mais. O abuso acarreta acidentes automobilísticos, sexo sem responsabilidade, pois alcoolizado não se preocupa em usar camisinha, daí o perigo da Aids.

Níveis de Prevenção

A prevenção primária apoiada nos educadores naturais (pais e professores) deve atuar o mais cedo possível devendo fazer parte da educação familiar. Neste nível, a prevenção deve ser feita por conjunto de medidas que devem estar inseridas na educação, visando intervir na formação dos jovens antes que surjam os problemas e para tanto é necessário que sejam aplicadas de maneira didática, criativa e prazerosa. No caso dos jovens, deve enfatizar medidas de conscientização e sensibilização quanto aos problemas da infância e da adolescência, em seus aspectos físicos e culturais. Com os adultos, a prevenção primária deve fornecer conhecimentos básicos para provocar e favorecer uma maior reflexão sobre os problemas abordados.

A prevenção secundária deve ser entendida como um prolongamento da prevenção primária, quando esta não alcançou os efeitos necessários. O nível secundário de prevenção se aplica quando o indivíduo está em dificuldades que o levam a pensar em consumir a droga ou mesmo já está consumindo de maneira não contínua por simples curiosidade. Neste caso, a pessoa ainda não é um dependente, mas o risco de se tornar é cada vez maior. Os métodos de abordagem devem ser feitos tanto por uma comunicação mais dirigida e específica para aprofundar o diálogo quanto conhecer mais profundamente a droga utilizada, seus efeitos e problemas.

Na prevenção terciária, os métodos se confundem com o tratamento ou reabilitação. Aqui, o indivíduo que consumia droga eventualmente por simples curiosidade, com a repetição do uso da droga, perde completamente o controle sobre o comportamento de consumidor eventual e se torna um "dependente", ou seja, consumidor compulsivo. Este nível terciário tem o objetivo de evitar a recaída e visa reintegrar o indivíduo à sociedade. Essa prevenção atua antes, durante e depois do tratamento. Antes do tratamento, objetiva auxiliar o dependente a solicitar ajuda, ou seja, conscientizá-lo de que seu problema não pode ser resolvido só por ele mesmo. Durante o tratamento a prevenção age evitando que o tratamento seja interrompido. Após o abandono das drogas a prevenção tem como meta auxiliar o indivíduo a se reintegrar socialmente, evitando recaídas.


Links:
www.hcnet.usp.br/iot
Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas
www.abead.com.br

Comentário a seguir tem como fonte o site "monografias.com"

Um comentário:

Antonio Celso da Costa Brandão disse...

Avaliação clínica e tratamento dos transtornos mentais associados ao uso do álcool

TRANSTORNOS MENTAIS DECORRENTES DO USO DE ÁLCOOL

Intoxicação alcoólica aguda

A intoxicação alcoólica é uma condição clínica decorrente da ingestão aguda de bebidas alcoólicas. Produz alterações neurológicas agudas e transitórias (que podem variar desde uma embriaguez leve à anestesia e coma, depressão respiratória e mais raramente morte (Ramos & Bertolete, 1997). É pouco provável que uma dose excessiva coloque em risco a vida dos pacientes dependentes, em função da tolerância desenvolvida para o álcool. Estes pacientes também podem chegar à inconsciência, mas é mais provável que isso ocorra com o bebedor eventual que exagera na quantidade de bebida por exemplo numa farra de sábado à noite (Edwards, 1999). Para pessoas que não apresentam tolerância, uma concentração sangüínea de 0,03 mg% leva à euforia. Com 0,05 mg% podem apresentar leves incoordenações. Com 0,1 mg% observa - se ataxia e com 0,2 mg% confusão mental e diminuição da concentração. Anestesia e morte ocorrem com níveis acima de 0,4% (Laranjeira e col., 1996). As alterações de comportamento decorrentes da intoxicação alcoólica aguda, incluem comportamento sexual inadequado, agressividade, labilidade do humor, diminuição do julgamento crítico e funcionamento social e ocupacional prejudicados. As mulheres atingem níveis sangüíneos mais elevados que os homens decorrentes do maior grau de gordura no organismo feminino comparado ao masculino.

Intervenção não farmacológica

A intoxicação alcoólica aguda é uma condição clínica passageira, não existindo um meio rápido de promover a eliminação do álcool do organismo. O tratamento consiste em medidas gerais como:

· Proporcionar um ambiente seguro, que proteja o indivíduo quando o mesmo interromper a ingestão de álcool, evitando qualquer dano a si mesmo e a outros.

· Proporcionar tempo para a metabolização do álcool (Laranjeira e col., 1996). O uso de estimulantes tem se mostrado clinicamente ineficaz (Miller, 1995).

· Às vezes é indicada uma lavagem estomacal (Edwards e col., 1999).

· Nos casos graves, quando se ingere doses letais de álcool, pode-se tentar a hemodiálise (Laranjeira e col., 1996). Isto é particularmente comum nas intoxicações com metanol, nas quais os riscos de morte e cegueira são relevantes. É fundamental solicitar dosagem dos níveis séricos e respiratórios de álcool, exames toxicológicos da urina e radiografia de crânio para se diagnosticar o coma alcoólico, que é responsável por um índice de mortalidade em torno de 5%.

· Excluir outras causas orgânicas para a sonolência (traumatismo craniano, hipoglicemia, cetoacidose, infecção sistêmica, overdose de outras drogas lícitas ou ilícitas), quando o paciente encontra-se intoxicado, já que a principal medida é deixa-lo dormir até passar os efeitos da intoxicação aguda. Deve-se assegurar, entretanto, que o mesmo não aspire o seu próprio vômito.

Intervenções farmacológicas

Não existem medicamentos clinicamente eficazes, capazes de reverter os efeitos farmacológicos do álcool (Samet e col., 1997).


Flumazenil

É um antagonista benzodiazepínico que parece ser capaz de reverter os efeitos do álcool nos pacientes comatosos, além de melhorar a ansiedade e a ataxia induzidas pelo próprio álcool (Laranjeira e col., 1996).


Naloxone

O uso de naloxone ainda é controvertido. Alguns estudos não conseguiram reproduzir os achados iniciais (reversão da intoxicação alcoólica aguda). Esta medicação estaria indicada para reverter ou bloquear os efeitos farmacológicos do álcool quando administrada antes da ingestão (Miller, 1995).


Intervenções Não Farmacológicas
Medidas gerais:
Ambiente seguro
Tempo para metabolização do álcool
Lavagem estomacal
Hemodiálise ou diálise

Intervenções Farmacológicas
Flumazenil Naloxone



Quadro 1 – Tratamento da Intoxicação Alcoólica Aguda

Síndrome de abstinência do álcool (SAA) (Consenso brasileiro sobre SAA, 2000)

A síndrome de abstinência é um conjunto de sinais e sintomas que aparece quando as pessoas que bebem excessivamente diminuem ou param de beber.

A síndrome de abstinência pode variar em níveis de gravidade. Os critérios da Classificação Internacional das Doenças - décima revisão (CID - 10), para o diagnóstico da SAA são:

F10.3: Síndrome de Abstinência

Um conjunto de sintomas, de agrupamento e gravidade variáveis, ocorrendo em abstinência absoluta ou relativa do álcool, após uso repetido e usualmente prolongado e/ou uso de altas doses. O início e curso do estado de abstinência são limitados no tempo e relacionados à dose de álcool consumida imediatamente antes da parada e da redução do consumo. A síndrome de abstinência pode ser complicada com o aparecimento de convulsões.

Diagnóstico

Os sintomas iniciam após 6 horas da diminuição ou interrupção do uso do álcool. Os sintomas inicias são tremores, ansiedade, insônia, náuseas e inquietação.

Sintomas mais sérios ocorrem em aproximadamente 10% dos pacientes, e incluem febre baixa, taquipnéia, tremores e sudorese profusa. Convulsões podem ocorrer em cerca de 5% dos pacientes não tratados com síndrome de abstinência do álcool. Outra complicação grave, é o delirium tremens (DT), caracterizada por alucinações, alteração do nível da consciência e desorientação. A mortalidade nos pacientes que apresentam DT é de 5 a 25% (Trevisam e col., 1998)

Avaliação do paciente

A avaliação inicial do paciente que refere uso crônico de álcool deve ser muito cuidadosa e detalhada (Romach & Sellers, 1991). A partir desta investigação é possível que se determine o nível de comprometimento no momento da intervenção, dos problemas relacionados a este uso, das complicações e das comorbidades associadas (Williams & McBride, 1998). Esta etapa possibilitará um encaminhamento mais adequado para o tratamento subseqüente. Portanto, ela deve ser direcionada para dois vértices fundamentais: (1) a avaliação da SAA e (2) problemas associados ao consumo (fluxograma 1).

1) Avaliação da síndrome de abstinência do álcool (SAA)

1.a) Anamnese: Uma história clínica deve ser feita com o objetivo de avaliar o paciente como um todo. Não existem sinais ou sintomas patognomônicos da SAA; portanto, todas as condições clínicas associadas e todos os diagnósticos diferenciais deverão ser buscados nesta etapa inicial. A maior parte das complicações associadas à SAA ocorrem devido a uma avaliação inadequada. Ênfase deve ser dada ao fato de que um paciente com SAA quase sempre tem alguma outra intercorrência clínica associada.

1.b) História do uso de álcool: devem-se buscar informações básicas sobre o padrão de consumo dos últimos anos, bem como avaliar a quantidade e freqüência do beber. Além disso, informações mais detalhadas sobre o padrão de consumo mais recente, em especial ao último consumo ou diminuição do consumo (ver sinais e sintomas da SAA). O diagnóstico pelo CID-10 de uso nocivo ou dependência do álcool deve ser buscado A partir do momento em que o diagnóstico da SAA é feito devem-se buscar dois tipos de avaliações mais pormenorizadas: o diagnóstico da gravidade da SAA e os diagnósticos das eventuais comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas.

Levando em consideração a gravidade do diagnóstico, é possível classificar o comprometimento do usuário em dois níveis: LEVE/MODERADO ou GRAVE. A partir desta classificação, o paciente será referendado para o melhor tratamento, de acordo com a disponibilidade da rede de serviços de saúde de cada região.

A estrutura biopsicossocial dos fenômenos relacionados ao uso problemático de álcool determinará também a complexidade de seu comprometimento. Consideram-se aspectos biológicos, psicológicos e sociais na definição dos níveis de comprometimento do paciente e o correspondente tratamento a que deve ser submetido.

Nível I – O comprometimento é LEVE/MODERADO, quando o paciente apresentar uma síndrome de abstinência leve/moderada, compreendendo os seguintes aspectos:


BIOLÓGICOS: leve agitação psicomotora; tremores finos de extremidades; sudorese discreta e facial; episódios de cefaléia; náuseas sem vômitos; sensibilidade visual, sem percepção auditiva e tátil alteradas.


PSICOLÓGICOS: o contato com o profissional de saúde está íntegro; encontra-se orientado temporo-espacialmente; o juízo crítico da realidade está mantido;

apresenta uma ansiedade leve; não relata qualquer episódio de violência auto ou hetero dirigida.


SOCIAIS: mora com familiares ou amigos, e esta convivência está regular ou boa; sua atividade produtiva ainda vem sendo desenvolvida, mesmo que atualmente esteja desempregado/afastado; a rede social é ainda considerada existente.


COMÓRBIDOS: sem complicações e/ou comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas graves detectadas no exame geral.

Para pacientes com comprometimento leve/moderado a intervenção deverá ser psicoeducacional e clínica, isto é o paciente deve ser informado com clareza sobre o diagnóstico, recebendo orientações sobre a dependência do álcool e sobre a síndrome de abstinência, além de tratamento específico para a fase de privação aguda de acordo com a necessidade. O encaminhamento será direcionado para o tratamento ambulatorial especializado (com ou sem desintoxicação domiciliar) (Bartu & Saunders, 1994).

Nível II - O comprometimento é GRAVE, quando o paciente apresentar-se com síndrome de abstinência grave com os seguintes aspectos:


BIOLÓGICOS: agitação psicomotora intensa; tremores generalizados; sudorese profusa; cefaléia; náuseas com vômitos; sensibilidade visual intensa; quadros epileptiformes agudos ou relatados na história pregressa.


PSICOLÓGICOS: o contato com o profissional de saúde está prejudicado; o paciente encontra-se desorientado temporo-espacialmente; o juízo crítico da realidade está comprometido; apresenta-se com uma ansiedade intensa; refere história de violência auto ou hetero dirigida; o pensamento está descontínuo, rápido e de conteúdo desagradável e delirante; observam-se alucinações auditivas táteis ou visuais.


SOCIAIS: o relacionamento com familiares ou amigos está ruim; tem estado desempregado, sem desenvolver qualquer atividade produtiva; a rede social de apoio é inexistente ou restrita ao ritual de uso do álcool; não existe familiar que seja responsável pelo tratamento domiciliar.


COMÓRBIDOS: com complicações e/ou comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas graves detectadas ao exame geral.

Para pacientes com comprometimento grave a emergência clínica psiquiátrica será a melhor intervenção e a orientação imediata da família quanto à gravidade do quadro em que se encontra. O paciente será encaminhado para tratamento hospitalar especializado, sendo a família encaminhada para uma abordagem psicoeducacional sobre o transtorno.

2. Pareamento

O ambulatório é uma intervenção não intensiva, pouco estruturada, pois utiliza menos recursos, é segura e menos dispendiosa. Cerca de 90% dos pacientes dependentes de álcool podem ser tratados no ambulatório. Para pacientes com síndrome de abstinência leve/moderada, sem comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas graves, o tratamento ambulatorial não oferece risco de vida. É um tratamento pouco estigmatizante, porque permite ao indivíduo se manter junto à família, dentro dos sistemas social e profissional dele, possibilitando ainda a participação ativa dos familiares no tratamento (Abbott et al., 1995; Collins et al., 1990; Fleeman, 1997; Wiseman et al., 1997).

O hospital é um tratamento mais estruturado e intensivo, portanto, mais caro, mas tem se mostrado tão efetivo como o ambulatório. Está indicado para pacientes:


com síndrome de abstinência grave, b) com comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas graves, c) com dependência grave que não se beneficiaram de outras intervenções; d) para aqueles que usam múltiplas substâncias psicotrópicas, d) que tem apresentado comportamentos auto ou heteroagressivos. A disfunção grave do sistema familiar e social é determinante para o encaminhamento ao hospital (McKay et al., 1997).