6.13.2012

Estar grávida no Brasil


Em artigo inédito, a epidemiologista Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Ensp/ Fiocruz escreve como são conduzidos os partos hoje no país

 

A gravidez é um tempo de muitas mudanças e expectativas na vida da mulher e das suas famílias porque implica em novas responsabilidades afetivas, sociais e legais decorrentes da maternidade. Mas, no nosso país, no ano passado, apenas 45% das gestações que terminaram em um nascimento foram planejadas para acontecer no momento em que elas ocorreram. Das não planejadas, 30% foram consideradas gestações não desejadas pelas mulheres.
Esse aspecto do não planejamento da gravidez, mais frequente ainda em adolescentes, torna a gestação também um motivo de angustia para uma grande parte das mulheres. Estima-se que houve cerca de um milhão de abortos em 2008, ou seja, uma gravidez em cada quatro terminou em aborto naquele ano no Brasil (Victora ET AL 2011). A ilegalidade atribuída ao aborto no país faz com que essa prática seja de alto risco, frequentemente realizada fora do sistema oficial de saúde, muitas vezes por leigos, sem a presença de profissionais qualificados, estando, em qualquer das situações, fora do controle sanitário e profissional vigentes. A situação de vulnerabilidade é maior para mulheres de baixa escolaridade, negras e jovens (Victora ET AL 2011).
Assim, desejar estar grávida é o primeiro componente para o sucesso e bem-estar da gestação. Dados recentemente publicados na “World Health Statistics” da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que, em 2010, 97% das gestantes brasileiras realizaram consultas pré-natais, sendo que 86% fizeram mais de quatro consultas e que 99% dos partos ocorreram dentro dos serviços de saúde, colocando o Brasil em uma situação próxima aos indicadores de cobertura dos países desenvolvidos (WHO, 2012). Dados preliminares do Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, realizado em 2011, mostram que mais de 80% das mulheres entrevistadas usaram os serviços públicos de saúde para acompanhar suas gestações e seus partos, sem diferenças entre as regiões geográficas, capital e interior, denotando a importância do SUS para o alcance daquele desempenho em âmbito internacional. Entretanto, persistem ainda problemas na qualidade da atenção oferecida, o que pode ser constatado pelas altas taxas de morbidade e mortalidade por patologias possíveis de serem evitadas por uma assistência bem feita no pré-natal e no parto (Vettore ET AL 2011).
Durante a gestação a mulher planeja o seu parto, a forma como vai receber o seu filho. Aqui no Brasil recebe influência da opinião do seu médico, dos familiares e amigos sobre as vantagens de fazer um parto normal ou cesáreo. Para gestantes que têm plano de saúde a escolha da via de parto (vaginal ou abdominal) pode se constituir em motivo de estresse. Ao início da gravidez a maioria delas prefere que o seu parto seja vaginal, opinião essa que vai mudando no decorrer da gestação.
Um estudo realizado no Rio de Janeiro, em 2008, por nosso grupo de pesquisa em hospitais do Sistema de Saúde Suplementar, onde as cesarianas atingem cifras próximas a 90%, mostrou que as mulheres mudam de ideia sobre o tipo de parto, durante a gravidez. No início um pouco mais de 30% delas gostariam de ter um parto cesariano, ao chegarem à maternidade, 70% havia se decidido pela cesárea, mas, ao saírem das maternidades, apenas 10% teve um parto por via vaginal. O medo da dor foi o principal motivo alegado inicialmente para desejar fazer uma cesárea e continuou sendo importante para ela mudar de opinião durante a gestação. Foi protetor estar bem informada sobre as vantagens do parto vaginal e o desejo do companheiro por essa modalidade de parto. As mulheres referiram com muita frequência (mais de 50%) que a sua decisão de mudança foi compartilhada com o medico (Dias et al 2008).
Em relação à cesariana, o que se sabe hoje é que essa cirurgia produz danos para a vida reprodutiva futura da mulher, aumentando o risco de placentação anormal, ruptura uterina, hemorragia pós-parto, infecção, admissão em UTI e mortalidade. É, portanto, um procedimento que não deve ser banalizado e que deve ser utilizado quando necessário, em situações em que esteja em risco a vida da gestante e do recém-nascido. Para o recém-nascido também são reportados prejuízos advindos de uma cesariana: mais frequentemente necessitam de suporte ventilatório para respirar ao nascer e usam mais a UTI neonatal, sendo essa necessidade tão maior quanto menor for a idade gestacional do recém-nascido (Hansen et AL, 2008). Outros danos tão importantes quanto esses são o retardo do contato da mãe com o filho no momento do nascimento e a baixa prática do aleitamento materno na sala de parto. Esses últimos aspectos jogam um importante papel no apego da mãe ao seu bebê e vice-versa (Buccolini ET AL 2008).
Nos serviços públicos brasileiros as gestantes que fazem parto vaginal são submetidas a uma excessiva manipulação, ficam presas ao leito, impedidas de deambular e se alimentar, usam ocitocina e dão à luz em posição de decúbito dorsal, com auxilio de episiotomia. Esses procedimentos, além de produzirem um trabalho de parto muito doloroso, são hoje não recomendados pela Organização Mundial de Saúde. Ou seja, tanto pelo excesso de cesarianas quanto pela inadequação do modelo ofertado para atendimento ao parto vaginal, no Brasil a pratica obstétrica é obsoleta, não segue as recomendações baseadas em evidencias cientificas e precisa ser modificada.
No Reino Unido e em outros países da Comunidade Econômica Europeia as gestantes também escolhem o tipo de parto que melhor convém a elas, levando em conta suas expectativas, as do seu companheiro e da sua família. Mas, diferente daqui, a escolha que elas fazem não é se o parto será cirúrgico ou não, mas qual a posição que elas desejam parir, se de cócoras, sentada, de joelhos, dentro da água, ou outra. Além dos cuidados pré-natais habituais, durante a gestação as mulheres se preparam psicológica e emocionalmente para o momento do parto, aprendendo técnicas de respiração, concentração e relaxamento que ajudarão no alívio das dores e aumentarão a segurança e tranquilidade para condução do seu parto. O parto tem um profundo significado para o encontro da mulher com a sua feminilidade e, por isso, naqueles países, os aspectos emocionais da parturição são também objeto de considerações pelos serviços de saúde, que cumprem um papel de dar suporte, amparo e garantia de segurança à escolha da gestante na condução do seu parto, em uma ambiência de conforto material, afetivo e emocional que inclui a presença da família no cenário das maternidades. Nesses países, os protocolos de atendimento ao parto recomendam o parto vaginal, com um mínimo de intervenção, sendo a decisão por uma cesariana, geralmente da responsabilidade do serviço de saúde, diante das condições e necessidades reais de cada caso clínico.
Esse modelo de atenção, baseado em tecnologias apropriadas para o parto e nascimento (também conhecido como parto humanizado), conduzido por enfermeiras obstétricas (midwives) e encontrado em quase todos os países europeus, tem ótimos resultados perinatais e está em franco contraste com o modelo que temos implantado aqui no Brasil. Com mais de 50% de cesarianas, cada vez mais as mulheres brasileiras têm parido anestesiadas, passando pelo processo do parto sem sentirem dor, mas também sem sentirem acontecer o próprio parto dos seus filhos. Por outro lado, a maioria dos nossos bebês tem sido retirada do útero pelos médicos, não fazem força para nascer, ficando subtraídos dessa experiência humana e vital tão significativa. Não temos nenhuma avaliação dos resultados do nosso modelo extremamente medicalizado de atenção ao parto sobre as crianças a médio e longo prazo, mas podemos reconhecer, sem muito esforço, que ele se constitui em uma ruptura com a maneira como nasceram as gerações brasileiras anteriores e que, do ponto de vista populacional, é uma experiência não avaliada previamente.
As mulheres brasileiras, mesmo que desejem, têm pouca chance de vivenciarem um parto do tipo humanizado porque esse modelo de atenção está implantado em pouquíssimas maternidades dos serviços de saúde. E, para as mulheres de nível socioeconômico mais elevado que são esclarecidas e desejam ter um parto vaginal, uma opção tem sido o parto domiciliar, geralmente realizado por enfermeiras obstétricas.
No Brasil a decisão sobre a realização de um parto cirúrgico sem indicação clínica tem sido considerado um direito de escolha da gestante. Ocorre que o exercício desse direito não tem se acompanhado de informações claras sobre o risco de um parto operatório. Ou seja, a escolha tem sido feita sem informações adequadas para a tomada de uma decisão consciente. Em parte porque os obstetras que as assiste também ou não têm essas informações, ou não baseiam sua pratica em evidencias cientificas. Ambas as situações são graves, sobretudo porque os manuais técnicos do Ministério da Saúde trazem recomendações corretas sobre a atenção ao parto e nascimento e estão disponíveis para todos.
Está em curso no país um movimento pela adoção de um modelo de atenção baseado em tecnologias apropriadas para o parto e nascimento. Iniciativas importantes do Ministério da Saúde tais como Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento, Lei do acompanhante, Programa de Qualificação das Maternidades no Nordeste e Amazônia Legal e, mais recentemente a Rede Cegonha, são exemplos desse esforço. Em paralelo, verifica-se um renascimento dos movimentos sociais das mulheres pelo resgate do protagonismo da mulher na condução do seu parto e do nascimento dos seus filhos. Um grande número de grupos associativos de mulheres vem surgindo no país, tendo a ReHuNa — Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – uma organização da sociedade civil criada em 1993 com o objetivo de formar uma rede em defesa do parto humanizado, um papel importante na articulação desse movimento pela mudança do modelo obstétrico vigente (http://www.rehuna.org.br/index.php/seminario). Existe hoje um consenso de que se necessita urgentemente reformar o modo de atender ao parto e nascimento das mães e crianças brasileiras

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