3.07.2015

Ou mais democracia ou vamos para o beleléu

O que está em jogo é avançar ou não na capacitação da sociedade para disputar o futuro do país contra a lógica dos mercados.

por: Saul Leblon

Agência Senado / Flickr
A separação entre direitos políticos e jurídicos, de um lado, e direitos sociais e econômicos, de outro, marca um período histórico específico da sociedade humana.
 
O período capitalista.
 
Aquele em que a democracia promete mais do que o mercado está disposto a conceder.
 
Em outros ciclos, sob o império romano, por exemplo, ou em sociedades escravocratas, as relações políticas e as estruturas econômicas guardavam asfixiante coerência.
 
Um escravo, como o próprio conceito indica, era integralmente despossuído de prerrogativas de quaisquer natureza.
 
Seria um oximoro falar em escravo com direitos civis se um poder irrestrito detinha  o mando sobre o seu corpo, a sua vida e a alma.
 
O escravo aos olhos do seu senhor era um ente desprovido de invólucro social.
 
A convivência nunca amistosa entre capitalismo e democracia guarda laços com essa raiz de polos antagônicos.
 
Do conflito emergiram avanços sociais, políticos e jurídicos  que abriram espaços de direitos subtraídos ao capital, em uma relação ontologicamente inconciliável  entre os que detém os meios produzir riqueza e aqueles cuja opção é vender seu corpo, sua mente –não raro, a alma--  para esse fim.
 
Quando a realidade ao redor chapinha na água rasa das querelas em que cidadãos da tipologia de um Eduardo Cunha, ou de um Aécio, mas também um Cândido Vacarezza (o ex-deputado petista que se avocou um projeto de reforma política à imagem e semelhança de sua particular visão de mundo) disputam o ordenamento da democracia brasileira, é quase uma questão sanitária olhar para além dos seus limites.
 
O Brasil só não vai para o beleléu da ingovernabilidade se mirar acima do tornozelo histórico em torno do qual o estamento conservador pretende restringir a influência direta da sociedade na definição do seu futuro e do futuro   do seu desenvolvimento.
 
Não são palavras retóricas.
 
O que está em jogo é uma disjuntiva que deveria ser explicitada à população por quem pretende ir além dos limites nos quais  a estirpe dos  ‘cunhas’ quer restringir a profundidade da reforma política brasileira.
 
O que está em jogo é avançar ou não na capacitação da sociedade para disputar o futuro do país com a lógica dos mercados.
 
O descrédito atual no sistema  político  decorre da incontornável constatação de que o grau de democratização das decisões no Brasil não propicia  à sociedade as ferramentas necessárias à superação de um impasse econômico que está arrastando a nação  para o beleléu da ingovernabilidade.
 
Pior que isso.
 
O que o conservadorismo pretende, mais uma vez,  é adequar a democracia ao mercado, não dotar a sociedade dos meios para se impor a ele.
 
Esse é o cerne da disputa em torno da reforma política (Leia o especial deste fim de semana de Carta Maior sobre o tema).
 
Até onde é necessário reformar a democracia brasileira?
 
Até onde for preciso para construir uma cidadania plena, capaz de dar ao desenvolvimento a sua destinação social e civilizatória.
 
Não é uma discussão metafísica.
 
No Brasil realmente existente  uma família assalariada paga imposto sobre o litro de leite;  a república dos acionistas embolsa dividendos livre, leve e solta, totalmente isenta de tributação.
 
O mesmo se dá com os lucros remetidos pelo capital estrangeiro, que o governo Fernando Henrique Cardoso isentou do imposto de 17% até então vigente no Brasil.
 
Idêntico critério plutocrático isenta integralmente os herdeiros, reiterando na esfera fiscal a discriminação sócio-genética que condena os frutos do berço pobre ao limbo.
 
Quando se fala que o Estado está gastando mais do que arrecada e é preciso ‘cortar’, dissimula-se  um embate político que cabe ao glorioso jornalismo de economia lubrificar em gordurosas perorações de meia verdade fiscal.
 
Uma democracia capaz de taxar dividendos, remessas e heranças subtrairia ao centurião Joaquim Levy  a prerrogativa de agir como um Bonaparte, que  arbitra  nas costas dos assalariados o principal  quinhão de sacrifício para regenerar as contas de toda a sociedade.
 
O governo estuda taxar as grandes fortunas, heranças, lucros e dividendos.
 
Por que não o fez logo de início?
 
Porque o sistema político brasileiro está assentado no poder dos interesses que seriam atingidos por esse cardápio de ‘ajuste’.
 
Uma reforma política  que mantenha intocado o poder do  dinheiro de sequestrar a democracia, precificando candidatos e partidos para inscrevê-los entre os seus ativos disponíveis, não credenciará a sociedade para destravar o passo seguinte que o Brasil requer.
 
O impasse coloca em jogo muito mais que um embate entre PT e PSDB.
 
A crise em curso  marca uma  mudança qualitativa  em relação a tudo o que o país viveu nos últimos doze anos.
 
Não é apenas um  intermezzo de ajustes para voltar ao que era antes, como sugere a conveniência do discurso conservador.
 
De agora em diante será  estruturalmente mais complexo, inevitavelmente mais conflitivo, governar em favor da maioria e da justiça social.
 
As determinações internacionais são relevantes.
 
A crise global é e será por muitos anos o novo normal. A China não crescerá mais os dois dígitos, em média, observados nas  últimas três décadas.
 
O desmonte definitivo do Estado social na Europa arrastará o continente para uma longa espiral descendente.
 
O império americano não tem mais fôlego para se erguer e arrastar o mundo ao redor.
 
Que esse trem descarrilado avance pelo sétimo ano, na mais lenta, incerta e anêmica recuperação de todas as grandes crises capitalistas do século XX, dá a medida do quão longe se encontram as margens do rio revoltoso em que flutua o futuro brasileiro
 
Mas há distorções locais de igual gravidade.
 
Elas não podem mais ser subestimadas, sob pena de se aleijar a capacidade de resistência diante do moedor de carne conservador.
 
A economia brasileira resistiu à lógica da restauração neoliberal nos últimos anos, mas deixou aberto um flanco que agora ameaça reverter suas conquistas e inviabilizar outras novas.
 
Esse é o principal alicerce da crise em curso.
 
A verdade é que a largueza das mutações sociais registradas desde 2003 não se fez acompanhar de uma contrapartida de representação política suficiente forte para evitar o risco do revés agora em marcha.
 
O Brasil avançou nos últimos anos explorando rotas de menor resistência, indo além delas em alguns casos e setores. Mas a crise  global evidenciou os limites dessa associação a frio entre desenvolvimento e justiça social.
 
Ao  bonapartismo do crescimento sucedeu-se assim o cesarismo do ajuste, igualmente à margem da repactuação social,  e ao custo de uma quase catatonia das forças progressistas.
 
O conjunto remete de volta à natureza singular da disputa em torno da reforma política brasileira.
 
Ademais de uma transição de ciclo econômico, e sobreposta a ela,  há uma crise da democracia brasileira  que sonega aos interesses amplos da sociedade meios para liderar  um novo estirão de desenvolvimento com justiça social.
 
O risco de o Brasil ir para o beleléu da ingovernabilidade a bordo de uma paralisia econômica –que interessa ao conservadorismo fomentar--  não é negligenciável.
 
A saída existe e não é essa que o Banco Central pratica, de manter a conflagração latente em estado de coma  através de doses crescentes de juros (12,75%, ou uma  taxa real de 5,3%, mais alta do planeta)
 
O desafio é encarar de frente uma lacuna de que sempre se ressentiu a agenda progressista desde a chegada ao poder, em 2003.
 
A lacuna da coerência entre meios e fins; entre o desenvolvimento que se quer para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.
 
Essa é a contradição que a crise escancarou.
 
Não se incorpora 60 milhões de ex-miseráveis e pobres ao mercado sem mexer nas placas tectônicas de uma ‘estabilidade capitalista’ alicerçada em uma das mais desiguais estruturas de distribuição de renda do planeta.
 
Sobram duas opções.
 
Avançar e dar coerência estrutural e política à emergência desse novo ator, ou recuar e devolvê-lo à margem de origem, colocando-o em modo de espera até a próxima maré cheia.
 
Até um novo ciclo de bonapartismo do crescimento acomodatício.
 
Não é apenas um impasse conjuntural.
 
É uma encruzilhada da democracia. O seu avanço, ou  o  seu acoelhamento  através de uma reforma abastardada, determinará se iremos para o beleléu enquanto projeto de futuro solidário e próspero;  ou se a sociedade assumirá o comando do seu destino para ditar um novo curso ao século XXI brasileiro
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