FUMO, BEBIDA & BATATA FRITA
13/09/2008
Eles são hoje três vilões combatidos - em nome da saúde pública - com força cada vez maior. E se tornaram símbolos do conflito que opõe a liberdade de escolha à vocação do Estado para tutelar nossa vida.
Em 1976, Roberto Carlos lançou um funk com a seguinte letra: Se faço alguma coisa sempre alguém vem me dizer/Que isso ou aquilo não se deve fazer/Já não sei mais o que é certo/E como vou saber/O que devo fazer/Que culpa tenho eu/Me diga amigo meu/Será que tudo o que eu gosto/É ilegal, é imoral ou engorda?.
Esse divertido libelo contra o movimento politicamente correto fez sucesso em pleno regime militar. O que inspirou Roberto Carlos a esse ato de transgressão foram as patrulhas morais que rechaçavam as auto-indulgências do cidadão comum por seus pequenos prazeres terrenos. Naquele ano o brasileiro habitava um modesto paraíso de liberdades individuais: podia tomar uma taça de vinho e dirigir seu Opala SS, soltar baforadas de Minister onde bem entendesse e comer biscoitos recheados sem se preocupar se cada mordida aumentaria seu risco de sofrer um infarto.
De lá para cá, não foi apenas Roberto Carlos que se tornou mais conservador. O Estado brasileiro também enquadrou alguns hábitos cotidianos. No dia 20 de junho, entrou em vigor a Lei número 11.705, conhecida como "Lei Seca". Seu objetivo é nobre: coibir a mistura de álcool e direção, uma combinação responsável por boa parte das 35 mil mortes no trânsito a cada ano. Para combater um problema tão nocivo à sociedade, a lei recorre a medidas extremas: ela não permite que o condutor de um veículo tenha bebido uma gota de álcool antes de dirigir - a tolerância mínima de 0,2 grama de álcool por litro de sangue foi proposta pelo Ministério da Saúde para evitar que medicamentos e enxaguantes bucais fossem pegos pelo bafômetro. Se o motorista estiver acima do limite de 0,6 grama por litro, além da multa de R$ 955 e de perder a habilitação por um ano, ele vai para a cadeia. Os reincidentes podem pegar uma pena de três anos. Uma tolerância tão baixa ao álcool só é vista em poucos países: nos que adotam a lei islâmica, como o Azerbaijão (onde também é proibido comer carne de porco e segurar a mão de uma mulher em público), em alguns dos ex-integrantes da União Soviética, como a Estônia, na problemática Colômbia e em países nos níveis mais baixos do Índice de Desenvolvimento Humano, como Etiópia, Mongólia e Nepal. Em geral, são países em que os cidadãos já estão acostumados a uma intervenção mais rígida do Estado em sua vida. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, de cultura mais liberal, o limite é de 0,8 grama por litro de sangue, quatro vezes maior que o brasileiro.
A Lei Seca não é o único exemplo de preocupação do Estado com hábitos particulares. Há três semanas, o governador José Serra enviou um projeto de lei à Assembléia Legislativa de São Paulo proibindo o fumo em lugares fechados, públicos ou privados. Nem mesmo as áreas livres dentro de condomínios ou os fumódromos de empresas seriam permitidos. A multa para os estabelecimentos poderá ir de R$ 220 a R$ 3,3 milhões. Acabariam também as alas para fumantes dos restaurantes. "Queremos prevenir problemas de saúde ligados ao tabaco e eliminar o fumo passivo", afirmou o secretário de Saúde de São Paulo, Luiz Roberto Barradas Barata.
"O projeto não é moralista, é uma medida de saúde pública", disse Serra. De fora, ficaram apenas os locais de culto religioso como centros de umbanda, onde o tabaco faz parte do ritual, instituições de saúde onde o fumo tenha sido recomendado por médicos, espaços ao ar livre e estabelecimentos como charutarias, devotados à turma das baforadas. Se a lei for aprovada, a fiscalização será feita pela Vigilância Sanitária, pelo Procon e pela Polícia Militar. Um número de telefone será criado para denúncias anônimas.
Uma lei de teor semelhante está em vigor no Rio de Janeiro desde 31 de maio. No caso do cigarro, as duas capitais brasileiras estão seguindo uma tendência dos países mais desenvolvidos. Assim como a bebida e o cigarro, a indústria dos alimentos também está sob a vigilância da turma da saúde. No fim do século XX, o mundo acordou para o problema da obesidade. Não mais como uma questão estética, mas como um dos mais graves problemas da sociedade moderna. Nos países desenvolvidos, os problemas de saúde relacionados à má qualidade e aos excessos da alimentação matam mais gente que a fome.
A reação envolve o cerco às empresas de fast-food, de açúcar e biscoitos, principalmente. Na semana passada, a ofensiva foi contra a gordura trans. Patenteado em 1902 na Alemanha, esse tipo de gordura artificial foi adotado pela indústria alimentícia desde os anos 1960 como substituto das gorduras de origem animal. A gordura trans é obtida pela adição de uma molécula de hidrogênio a um óleo vegetal, tornando-o sólido. A princípio, acreditava-se que ela tornaria os alimentos mais saudáveis. Em 1988, um estudo ligou sua presença em alimentos a uma série de doenças vasculares. De lá para cá, várias pesquisas revelaram que ela aumenta um tipo de colesterol, chamado LDL, nocivo ao organismo. Atualmente, os rótulos de alimentos com gorduras trans devem informar em que quantidade ela é usada na composição. Alguns alardeiam ser livres desse tipo de gordura. Para o governo, isso é pouco. Numa reunião com os fabricantes de alimentos realizada neste ano, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, citou os números de pessoas hospitalizadas por causa de acidentes vasculares cerebrais para justificar o banimento do ingrediente.
A gordura trans deixa a batata frita crocante, dá consistência à margarina e aos requeijões cremosos e tem uma infinidade de aplicações na indústria alimentícia. Para Edmund Klotz, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação, não é possível eliminar esse ingrediente em três anos, como pede o Ministério da Saúde. "Se for fixado um prazo para acabar com a gordura trans, vamos ter de voltar à velha banha", disse. Não há dúvida de que todos esses ataques a hábitos individuais são sustentados pela lógica do bem-estar geral. Trata-se, afinal, de um esforço coletivo para salvar vidas humanas. Mas será que, para conquistar esse objetivo nobre, é necessária uma intervenção tão radical sobre os direitos individuais? Até que ponto a defesa - legítima - da saúde e do bem-estar coletivos deve se sobrepor à defesa - também legítima - da liberdade de escolha de cada um de nós? No Brasil de hoje, a balança pende claramente para a defesa da saúde coletiva. Pesquisas feitas antes da publicação da Lei Seca já sugeriam a predisposição da população em aceitá-la. Em São Paulo, 88% dos motoristas concordavam em não beber uma gota de álcool antes de dirigir. Nas semanas seguintes à sua entrada em vigor, os argumentos em seu favor só cresceram. Em julho, o atendimento a vítimas feito pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), em 14 capitais brasileiras, caiu 24% em relação ao mesmo período do ano passado. Nas rodovias federais, as mortes caíram 14,5%.
Se a tendência se mantiver, terão sido salvas 5 mil vidas em um ano. Antes da lei, o país desperdiçava anualmente R$ 24,6 bilhões com acidentes, entre custos hospitalares e perda de produtividade. "Algo estava profundamente errado", diz o ministro Temporão. "Pesquisas do Ministério vinham apontando que as pessoas, principalmente jovens, estavam bebendo e dirigindo sem o menor cuidado".
A lei pode salvar vidas e evitar o desperdício de bilhões de reais na saúde pública. Para os liberais convictos, o indivíduo é integralmente responsável por seus atos. Se decidir entornar um barril de chope e em seguida guiar um caminhão, à noite, o problema é dele. Mas, se não conseguir respeitar as normas do trânsito ou, pior, se provocar um acidente, deverá sofrer uma punição severa - proporcional à sua irresponsabilidade. A certeza da punição em caso de infração está intimamente ligada à defesa da liberdade de escolha. No Brasil, um país acostumado à impunidade e à vista grossa sobre as transgressões, muitas leis só pegam se forem radicais - e eliminarem por completo a possibilidade de transgressão. Para pegar, elas também precisam mobilizar a opinião pública. Por isso, o maior mérito da Lei Seca não é o texto em si, e sim sua ampla divulgação - e a fiscalização que a acompanha. Até porque o texto não é diferente do que estava em vigor havia dois anos. "Desde 2006 não é permitida uma gota de álcool no sangue do motorista", diz Luis Flávio Gomes, doutor em Direito Penal, ex-promotor de justiça e ex-juiz de Direito. "A lei pegou porque houve uma decisão política nos órgãos fiscalizadores de levar a questão a sério". O caso de Macapá, no Amapá, reforça essa tese. Lá não há bafômetros. Mesmo assim, a Polícia Militar registrou uma queda de 32% no número de acidentes no primeiro fim de semana pós-Lei Seca. "Mas aí os motoristas descobriram que ainda estávamos sem bafômetros, e a coisa desandou", diz o capitão Jones da Silva, da Companhia de Trânsito de Macapá. Na segunda semana, os acidentes aumentaram 40%.
Enquanto a população achou que poderia sofrer o rigor da lei, evitou beber e dirigir. Quando intuiu que não havia fiscalização, voltou ao hábito anterior. Se o principal é fiscalizar, seria necessário ter uma nova lei? Os defensores da Lei Seca dizem que sim. Primeiro, porque sua rigidez provocou a divulgação necessária para mobilizar a população. Em segundo lugar, porque o limite zero é claro. Claríssimo. Um limite diferente do zero criaria uma zona cinzenta de permissão para beber - uma zona em que qualquer transgressão passaria a ser tolerada. E aí ficaria difícil controlar a mistura de álcool e direção. Mas repousa justamente aí o dilema: deve o Estado garantir que ninguém seja capaz de transgredir uma norma ou deixar que os cidadãos exerçam suas escolhas - e arquem com as conseqüências? Assim como beber e dirigir, fumar na frente dos outros é um hábito hoje rechaçado pela maioria.
Uma pesquisa encomendada pelo governo de São Paulo sugere que a população parece preparada para a proibição do fumo em locais fechados, públicos ou privados. Segundo a pesquisa, 90% dos paulistas aprovam a restrição. Só 8% acharam que o novo projeto é uma arbitrariedade. O combate ao fumo passivo é uma tendência mundial. Ele tem crescido junto com o esclarecimento da medicina sobre os problemas de saúde que o cigarro causa. Até cidades em que o ato de fumar gozava de certa tradição, como Londres e Paris, baniram os fumantes de locais fechados. Os países mais desenvolvidos da Europa já adotaram algum tipo de restrição, com o apoio maciço da população. A questão das liberdades individuais, aqui, é um pouco mais difusa. Porque ao direito de um cidadão de fumar opõe-se o direito de seu vizinho de não inalar a fumaça que seu cigarro exala.
Algumas décadas atrás, o não-fumante era um sujeito oprimido. Tinha de tolerar a fumaça alheia em cinemas, ônibus e até elevadores. Agora, o pêndulo virou totalmente a seu favor.
Quem fuma é considerado um agressor do ambiente - e a perseguição ao fumante está se tornando implacável. Nas empresas, eles são confinados a um espaço em geral diminuto, que junta uma quantidade de fumaça difícil de agüentar até para o mais empedernido dos tabagistas. Nos restaurantes, eles têm de sentar-se em geral no pior lugar. E, nas cidades em que já vigoram leis mais restritivas, resta-lhes sair do prédio para fumar. Se é forçoso escolher entre a liberdade do fumante e a do não-fumante, a lógica diz que a do segundo deve ser privilegiada. Mas o cerco aos cidadãos que, mesmo informados de todos os malefícios, decidem fumar não é exagerado? Barata, o secretário da Saúde de São Paulo, diz que não. "O mundo acordou para o problema do tabagismo passivo", afirma.
O mundo parece ter acordado também para o problema da gordura trans. "A publicidade dos sorvetes deveria trazer advertências, junto com imagens, tais como: 'consumir gordura trans causa gordura visceral, aumentando o risco de infarto e derrame cerebral', acompanhada das imagens dessas doenças", escreveu a pesquisadora Mérces da Silva Nunes num livro que critica os efeitos nocivos dos alimentos industrializados. Seria uma ação rigorosamente igual à adotada contra o fumo. Se a discussão filosófica sobre liberdade e proteção à saúde é algo intangível, há um campo bastante pragmático para analisar os hábitos individuais: seu custo.
Acidentes de trânsito, tabagismo e doenças ligadas aos hábitos alimentares pesam nas contas públicas. Somente o cigarro drena R$ 338 milhões por ano do Sistema Único de Saúde (SUS) em tratamentos de doenças relacionadas ao fumo. Isso equivale a 7,7% do custo de todas as internações e quimioterapias no país. O SUS gastou R$ 118 milhões no ano passado com o tratamento de pacientes com acidente vascular cerebral - um dos possíveis efeitos colaterais da gordura trans (leia o quadro sobre os gastos com doenças abaixo).
É tudo em nome da saúde?
NAS LEIS, NOS IMPOSTOS E NOS GASTOS PÚBLICOS, O QUE ESTÁ POR TRÁS DE CADA NOVO VILÃO - O que dizia a legislação - A Lei no 11.705 proibiu o consumo de bebidas alcoólicas por condutores de veículos. Até 0,6 g/l (grama de álcool por litro de sangue), o equivalente a dois copos de cerveja, a multa é de R$ 955 e a habilitação fica suspensa por 12 meses. Acima desse limite, o motorista pode ser preso por 3 anos Se aprovada pela Assembléia Legislativa de São Paulo, a lei deverá banir os espaços destinados aos fumantes em todos os ambientes coletivos fechados, privados ou públicos.
Os fumantes só poderão fumar ao ar livre ou dentro de casa. As multas poderão chegar a R$ 3,2 milhões
A intenção do Ministério da Saúde é estabelecer um prazo, entre três e cinco anos, para que 100% dos alimentos fabricados no país deixem de utilizar gordura trans. A Organização Mundial da Saúde recomenda que apenas 1% das calorias consumidas diariamente tenha como origem a gordura trans. O mercado - Em 2007 foram consumidos 10,3 bilhões de litros de cerveja no Brasil. Os bares e restaurantes movimentaram R$ 50 bilhões no ano passado. O faturamento da indústria de fumo no país foi de R$ 9,5 bilhões em 2005. Os brasileiros compraram 131 bilhões de cigarros.
Em 2007, a indústria de produtos alimentícios faturou no Brasil R$ 196 bilhões. Os óleos e as gorduras ocupam o quarto lugar no ranking de faturamento entre os itens alimentícios. O imposto - As cervejarias pagam em impostos 35% do que faturam. Em 2007, o total pago foi de R$ 8,7 bilhões. A partir de 1º de outubro, a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) das bebidas será elevada em 30%. Ele será de R$ 0,14 a R$ 17,39 por litro, dependendo do tipo de bebida. Segundo a entidade que representa o setor, os impostos somam 66,63% do preço de um maço de cigarros no Brasil. O total arrecadado pelo governo com impostos sobre cigarro foi de R$ 5 bilhões em 2006.
A alíquota que incide sobre alimentos industrializados não discrimina produtos com ou sem gordura trans. Em média, a carga tributária bruta dos alimentos para o consumidor é de 35,5%. O custo social - O número de acidentes fatais nas rodovias federais caiu 13,6% nos primeiros dois meses da Lei Seca, segundo a Polícia Rodoviária Federal. De 20 de junho a 20 de agosto, o país deixou de gastar R$ 48,4 milhões em atendimento médico, internações, pagamentos de seguros etc. em decorrência de mortes no trânsito nas estradas federais O SUS gasta R$ 338 milhões por ano com fumantes, o equivalente a 7,7% do custo de todas as internações e quimioterapias no país, segundo um estudo da Fundação Oswaldo Cruz. Contando os casos de câncer relacionado ao cigarro atendidos pela rede privada, esse valor sobe para cerca de R$ 1,12 bilhão. Em 2007, 168 mil pessoas foram hospitalizadas em decorrência de acidente vascular cerebral (AVC), que tem como uma das causas o colesterol alterado.
A gordura trans, entre outros fatores, provoca o aumento de colesterol ruim. O Sistema Único de Saúde gastou R$ 118 milhões no ano passado com o tratamento de pacientes com AVC. Mas o governo também enche os cofres com os tributos sobre o fumo, as bebidas alcoólicas e os alimentos que contêm gorduras trans. Em 2006, foram R$ 5 bilhões em taxas cobradas sobre o cigarro. Os fabricantes de cerveja pagaram, juntos, outros R$ 7,2 bilhões. O imposto sobre produtos industrializados (IPI) que incide sobre bebidas alcoólicas será reajustado em 30% no dia 1º de outubro.
Esses não são impostos que todos pagam. Apenas aqueles que consomem cigarros ou cervejas. A economia que bares e restaurantes movimentam também não pode ser desconsiderada. "Houve uma queda de 40% no movimento nos bares. Isso quer dizer que 100 mil pessoas ficarão sem emprego em breve", diz Percival Maricato, diretor-jurídico da Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel).
No dia 4 de julho, a entidade questionou na Justiça a constitucionalidade da Lei Seca.
O Supremo Tribunal Federal deverá se pronunciar a respeito até o fim do ano. O ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, estaria preocupado com "interesses da coletividade".
Ninguém questiona os malefícios do fumo - inclusive, com crescentes evidências, do fumo passivo -, da gordura e da irresponsável mistura de bebida e direção. Mas isso não significa que devemos saudar alegremente a intromissão do Estado em nossa vida particular
"A História ensina que, quando o Estado começa a controlar totalmente o indivíduo, ele termina considerando-o um incapaz de decidir por si mesmo", diz Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "O mais perigoso é que isso começa de uma forma politicamente correta, com todo mundo aceitando em nome de um bem maior, no caso a saúde.
" Rosenfield afirma que, quando o Estado passa a ter uma tutela sobre o cidadão, sua liberdade de escolha pode ser restringida. "Há um interesse do Estado em transformar o cidadão numa máquina que não adoeça, trabalhe para gerar riqueza e pagar impostos".
NUNCA FUI MAGRA - O consumo de gordura trans não deve passar de 2 gramas ao dia. Descubra onde ela se esconde (valores referentes a porções de 100 gramas). A ficção também é pródiga em apontar os riscos representados por essa tendência de controlar tudo em nome do bem comum.
No filme O Demolidor, de 1993, Sylvester Stallone vive um policial da década de 1990 condenado a ser congelado por 30 anos por um crime que não cometeu. Quando acorda, em 2032, o mundo é irreconhecível. No futuro é proibido dizer palavrões (máquinas imprimem multas automaticamente quando ouvem um), o sexo só pode ser feito mentalmente com a ajuda de um computador e os policiais estão proibidos de usar armas. A agente designada para acompanhá-lo tenta dissuadi-lo de acender um cigarro. "Cigarros não fazem bem para você, e tudo o que não é bom para você é ilegal. Álcool, cafeína, esportes de contato, carne..." Mas nada surpreende tanto o personagem de Stallone quanto sua primeira ida a um restaurante do futuro. "Me passa o sal", diz. "Sal não é bom para você, portanto é ilegal". Também na academia há exemplos de como o politicamente correto pode degenerar em totalitarismo. Um recente artigo do americano Stephen J. Dubner, co-autor do livro Freakonomics, uma visão original da economia, mostra como a corrida para sanar o aquecimento global pode se desvirtuar.
Dubner cita um artigo de uma revista inglesa de medicina segundo o qual os obesos contribuem para o aquecimento global. Como a produção de alimentos libera gases do efeito estufa, quem consome mais calorias prejudica mais o meio ambiente.
Partindo do mesmo princípio, o autor diz que quem faz exercícios e queima calorias também é responsável pelo efeito estufa. Ele propõe, sarcasticamente, a criação de um imposto sobre ciclistas e corredores, algo como US$ 0,1 por hora de atividade. O antropólogo Roberto DaMatta, ex-fumante, diz que a proibição ao fumo é essencial para a vida em ambientes saudáveis. Mas afirma que criar leis que proíbem liberdades pode ser uma grande dor de cabeça. "As leis de igualdade são incompatíveis com as de liberdade", diz. "Cada um tem a liberdade de fumar.
Mas é proibido fumar em lugares públicos. Não há conjugação das leis, temos de escolher entre elas." Para DaMatta, num ambiente livre, o mais poderoso tende a engolir o mais fraco. "A menos que se restrinja a liberdade que ele tem para isso, em prol da igualdade." E quem é o mais forte? No Brasil, terra do "jeitinho", o mais forte tende a "engolir" também as leis - sobretudo as fracas. Daí decorreria, portanto, a necessidade de rigidez da Lei Seca, que prevê pena de prisão a quem dirigir embriagado.
A tentação de elevar o grau de punição para coibir o mau comportamento já levou a abusos históricos. Um dos exemplos mais conhecidos foi a lei seca que vigorou nos Estados Unidos entre 1920 e 1933. Ela proibia a fabricação, o comércio e o consumo de álcool em todo o país.
A idéia era eliminar, pela raiz, a corrupção e o crime e diminuir a violência doméstica. O efeito foi o oposto. Amadores começaram a fazer bebida em casa, médicos receitavam uísque medicinal, vendido em farmácias, a Máfia cresceu e corrompeu a polícia. Com o aumento da intoxicação por bebidas não-fiscalizadas, o custo para a saúde pública aumentou. E o número de estabelecimentos ilegais vendendo álcool chegou a 30 mil em 1927 - o dobro do número de bares que existiam antes da lei. "Os decretos presidenciais, ministeriais, as portarias, as medidas provisórias e as resoluções terminam dando ao Executivo um poder enorme", diz Rosenfield.
O perigo de conceder poder ao Estado para decidir sobre as escolhas individuais é chegar ao ponto em que a regulação deixa de proteger para invadir. É o que ocorre quando o Estado eleva um tributo. Ele obriga o contribuinte a abrir mão de suas escolhas de consumo para sustentar um aparelho que não abre mão dos próprios gastos. "Este não é um movimento exclusivamente brasileiro", diz o jurista Tércio Sampaio Ferraz Junior, autor do livro Direito Constitucional.
Nos Estados Unidos, o colunista David Harsanyi escreveu um livro sobre as liberdades individuais seqüestradas. Ele cita como exemplos, além de leis que proíbem o fumo, o álcool e a gordura trans, os playgrounds ultra-seguros (chamados de "sem-diversão"), o banimento de skatistas e de pornografia. "Esses ataques à liberdade são cheios de boas intenções", diz. "Mas são basicamente como babás puritanas e autoritárias, que não toleram ninguém vivendo de forma diferente".
Harsanyi usa o termo Estado-babá para definir políticas intervencionistas. "Somos todos crianças, e o Estado virou a grande babá que cuida de nós", diz Ferraz. Mesmo o valor da saúde pública não pode ser considerado absoluto. Não apenas porque pode se opor a outros valores ideais - como a liberdade ou o prazer -, mas também porque é passível de manipulação. O argumento da saúde pública já deu base para políticas esdrúxulas, como a eugenia, conceito com seguidores nos governos de Alemanha, Estados Unidos e Rússia na primeira metade do século XX.
Na Alemanha nazista, a saúde pública ajudou a justificar políticas de segregação, perseguição e depois eliminação de não-arianos. Na União Soviética, o defensores da eugenia calaram-se assim que a primeira crise se instalou. Como mais trabalhadores eram necessários para compor as engrenagens do sistema, a "higiene racial" foi suspensa. Houve traços de eugenia também nos EUA.
Em 1907, 20 Estados tinham leis de esterilização. Tudo feito em nome da cidadania. Ao Estado-babá corresponde em geral um processo de "vitimização" do cidadão. Isso ficou claro nos EUA, a partir da década de 1950, quando se descobriu que a indústria de tabaco escondia os malefícios do fumo. A partir daí, começou uma indústria de processos, que persiste até hoje - mesmo com toda a informação disponível sobre o risco de câncer. Os pedidos de indenização estão agora chegando à indústria do fast-food. O argumento por trás das ações é que o indivíduo é indefeso ante a máquina de propaganda e, posteriormente, ante o vício dos açúcares e das frituras. "Isso limita profundamente a dignidade humana", diz o jurista Ferraz. Um valor indispensável à condição humana é a responsabilidade que vem com cada ato. Pelo menos em tese, quem fuma o faz porque quer.
Quem come batata frita o faz porque tem prazer. "Tirar das pessoas a responsabilidade por seus atos as torna infantis para o resto da vida", diz Ferraz. No mundo perfeito, todos teriam todas as informações à disposição, e as escolhas seriam sempre as melhores: trariam saúde, prazer, conhecimento, riqueza, bem geral. Mas, como disse o filósofo inglês Isaiah Berlin no ensaio Sobre a Busca do Ideal, nossos ideais são muitas vezes contraditórios.
E, quando se persegue um deles com afinco demais, acaba-se por deixar outros pelo caminho.
O CERCO AOS RISCOS - Como cinco países de culturas diferentes lidam com os fumantes e com os motoristas que bebem.
ARGENTINA - Fumo: o país tem o maior índice de fumantes da América Latina - 38% da população. As principais cidades restringiram o fumo em bares, restaurantes, casas noturnas e shoppings; Bebida: o carro de motoristas flagrados com mais de 0,5 grama de álcool por litro de sangue é apreendido. Os fiscais permitem uma segunda prova.
EUA - Fumo: em quase metade dos 50 Estados americanos é proibido fumar em locais coletivos públicos ou privados; Bebida: as leis variam em cada Estado. O limite fica entre 0,1 e 0,8 grama por litro de sangue, mas o motorista é obrigado a fazer o teste do bafômetro. Na Califórnia, a tolerância é zero até 21 anos. Inglaterra - Fumo: proibiu o cigarro em lugares públicos em julho de 2007.
Uma pesquisa recente revela que 400 mil pessoas pararam de fumar em decorrência da lei antitabaco. Bebida: o limite é 0,8 g/l, e os ingleses são obrigados a passar pelo teste do bafômetro sob pena de permanecerem detidos por pelo menos 12 horas. Japão - Fumo: é um dos países mais permissivos em relação ao cigarro. Os fumantes são 33% da população, segundo a OMS; Bebida: foi um dos primeiros países que diminuíram a tolerância ao álcool para zero, ainda na década de 1970. Até passageiros podem ser presos se permitirem que alguém embriagado dirija.
Rússia - Fumo: uma lei de 2002 restringe o cigarro em edifícios públicos federais, locais de trabalho, universidades, hospitais, cinemas e transportes públicos. Bebida: motoristas bêbados causaram 15 mil mortes no trânsito em 2007. O limite de álcool permitido no sangue é de 0,3 grama por litro.
FONTES: OMS, Ministério da Saúde, International Center for Alcohol Policies, Sindicato da Indústria do Fumo, Instituto Nacional do Câncer, Fundação Oswaldo Cruz, Abrasel, Polícia Rodoviária Federal, Federação Nacional das Empresas de Seguro, Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação. - Marcelo Zorzanelli, shutterstock.com -
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