O que os familiares das vítimas têm feito para reconstruir o cotidiano cinco anos depois do maior acidente aéreo brasileiro
Rachel CostaRECOMEÇO
Após perder sua única filha, Thaís (abaixo), o casal Ana e Dário
se viu sem chão. Eles decidiram, então, ser pais mais uma
vez e da gravidez nasceram os gêmeos Tomás e Anna Beatriz
Ter filhos novamente foi o caminho encontrado pela historiadora Ana Volpi Scott, 53 anos, e seu marido Dário Scott, 49 anos, para amainar a dor pela perda da filha Thaís, que hoje teria 19 anos. A menina, sobrinha-neta do pintor modernista Alfredo Volpi, era uma das passageiras que embarcou no voo JJ 3054 em Porto Alegre, com destino a São Paulo, na tarde de 17 de julho de 2007.
A jovem visitaria parentes nas férias. Mas sua viagem foi interrompida quando o Airbus A-320 da TAM não conseguiu frear na pista do aeroporto de Congonhas e se chocou em alta velocidade contra o galpão da TAM Express, causando uma explosão seguida por um incêndio que varou a noite e só foi controlado no dia seguinte. A tragédia entrou para a história como o pior acidente aéreo em solo nacional, com 199 mortos, e somente agora, na data em que se completam cinco anos do acidente, será inaugurado o Memorial 17 de Julho em homenagem às vítimas.
TESOURO
A família Masseran Xavier recebeu, em meio à tragédia, uma notícia alentadora:
a máquina com as fotos da filha Paula em Gramado havia passado
incólume ao incêndio. Eles refizeram a viagem em junho
“Foi horrível ver pela televisão o avião
pegando fogo e saber que minha filha estava lá. Não sei como não
enlouquecemos”, conta Ana. Para compensar o vazio, a historiadora se
entregou ao trabalho na universidade e Dário dedicou-se à criação da
Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo JJ 3054 (Afavitam),
entidade da qual é presidente. Nada disso, porém, lhes devolvia a
motivação para viver. “Você fica sem ter por que fazer as coisas. Para
que trabalhar? Para que sair de casa?”, relembra ela. Foi quando, já no
fim de 2009, resolveram retomar um plano antigo, abandonado no passado:
ter mais filhos. Com mais de 50 anos, Ana tinha as estatísticas jogando
contra, mas, mesmo assim, encarou o processo de inseminação artificial.
Engravidou na primeira tentativa e, em 18 de agosto de 2010, se viu às
voltas novamente com fraldas e mamadeiras com o nascimento dos gêmeos
Tomás e Anna Beatriz. “Sou muito feliz com os dois, mas ao mesmo tempo é
um sentimento paradoxal, pois nunca poderei ter meus três filhos
juntos”, pondera.
Superar a dor da perda é um exercício
árduo e cotidiano, encarado das mais diversas maneiras pelos familiares
das vítimas do voo JJ 3054. Cada família ainda busca encontrar um ponto
de equilíbrio entre manter viva a memória do ente querido e seguir
adiante. “Ainda me arrepio quando falo sobre isso”, diz a administradora
Sílvia Masseran Xavier, 56 anos. Faz pouco mais de um mês que ela e o
marido. Archelau, 59, voltaram de Gramado (RS). A escolha não foi
aleatória. A cidade gaúcha foi o último destino da filha Paula, morta
aos 23 anos no acidente junto com o namorado, quando voltavam da viagem
de comemoração dos dois anos de namoro. Entre os escombros da tragédia,
um pequeno tesouro estava guardado para a família Masseran Xavier.
Apesar do incêndio, forte o suficiente para consumir quatro corpos de
vítimas, o chip de memória da câmera de Paula foi preservado, com 160
imagens em seu interior. “Visitamos todos aqueles lugares que apareciam
nas fotos”, conta Sílvia. “Foi o encerramento de um ciclo e foi bom para
passar a saudade”, diz.
Repetir os passos do ente morto, porém, nem sempre traz paz aos familiares. Para Elisabete Vanzin, 52 anos, ir às cidades prediletas do filho, o piloto Vinícius Costa Coelho, morto no acidente aos 24 anos, tornou-se um ritual obsessivo do qual ela não consegue se libertar. O primeiro destino, em 2009, foi Buenos Aires, última viagem que havia feito com Vinícius duas semanas antes da tragédia. Em solo portenho, sentiu a agradável sensação de estar novamente com o filho. Quando retornou a casa em Porto Alegre, porém, deparou-se mais uma vez com o vazio da perda. Mesmo assim, tentou o método várias outras vezes. Desde então, esteve no Chile, em Paris, Fortaleza, Nova York, Salvador, Manaus, Orlando e Miami. “Sei que estou tentando viver a vida dele e que preciso parar, mas é difícil”, desabafa Elisabete, que não conseguiu voltar ao trabalho e vive à base de antidepressivos.
Repetir os passos do ente morto, porém, nem sempre traz paz aos familiares. Para Elisabete Vanzin, 52 anos, ir às cidades prediletas do filho, o piloto Vinícius Costa Coelho, morto no acidente aos 24 anos, tornou-se um ritual obsessivo do qual ela não consegue se libertar. O primeiro destino, em 2009, foi Buenos Aires, última viagem que havia feito com Vinícius duas semanas antes da tragédia. Em solo portenho, sentiu a agradável sensação de estar novamente com o filho. Quando retornou a casa em Porto Alegre, porém, deparou-se mais uma vez com o vazio da perda. Mesmo assim, tentou o método várias outras vezes. Desde então, esteve no Chile, em Paris, Fortaleza, Nova York, Salvador, Manaus, Orlando e Miami. “Sei que estou tentando viver a vida dele e que preciso parar, mas é difícil”, desabafa Elisabete, que não conseguiu voltar ao trabalho e vive à base de antidepressivos.
ROTINA
Pai da comissária de bordo Madalena, Roberto mudou-se do Sul para São Paulo e vai,
todas as terças-feiras às 18h30, acompanhar no aeroporto de Congonhas
o desembarque do mesmo voo que chega de Porto Alegre
“Na maior parte das vezes, não nos damos o direito de pensar que podemos perder o filho. Então, quando acontece, é comum surgir uma dificuldade muito grande para lidar com isso”, diz a psiquiatra Dirce Perissinotti, da Universidade Federal de São Paulo. A profissional, à época no Hospital das Clínicas, fez parte da primeira equipe a atender as famílias, quando as dezenas de parentes se amontoavam em frente ao Instituto Médico Legal (IML) à espera da identificação dos corpos, e se lembra do estado de choque em que eles se encontravam. No entanto, ela diz que seguir com essa sensação de alijamento da realidade cinco anos depois é um indicativo de patologia e requer ajuda profissional. “Se a pessoa ainda está presa ao passado, é preciso buscar tratamento”, avalia.
A distância entre o esforço para lembrar e a vontade de esquecer, porém, pode ter limites tênues. É o que se vê pela janela do apartamento da família Silva localizado no 22º andar. A filha Madalena, então com 20 anos, era uma das comissárias de bordo do voo JJ 3054. Depois da tragédia, a família de gaúchos trocou um sobrado na pequena Dois Irmãos, a 50 quilômetros de Porto Alegre, por um prédio em meio ao caos metropolitano de São Paulo. Dali, tem como paisagem o intenso vaivém de aeronaves na pista do Aeroporto de Congonhas, de um lado, e, do outro, a “árvore da vida”, uma amoreira frágil cujos galhos retorcidos se abrem lembrando uma letra “V”, no entorno da qual foi construído o memorial às vítimas. A planta foi tudo o que restou após o incêndio no galpão da TAM Express. Todas as noites de terça-feira, dia do acidente, o pai de Madalena, o empresário Roberto, 56 anos, dirige-se para o Aeroporto de Congonhas. Em frente à porta de desembarque, acompanha a saída de todos os passageiros e tripulantes do voo JJ 3046, número dado após a tragédia ao avião da TAM, que parte às 17h27 do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, com destino a São Paulo. Quando o fluxo acaba, volta solitário para seu apartamento. “É uma maneira de eu me sentir próximo dela”, diz ele, que viu a filha pela última vez num portão de embarque.
Uma perda dessa magnitude deixa marcas emocionais tão profundas que o processo de refazer a vida costuma ser uma longa caminhada. O empresário Ítalo Luiz Dalprat, 51 anos, viu a tragédia de perto porque estava em Congonhas esperando os filhos Caio, 12 anos, e Rafaella, 17. Mas ao contrário do casal Ana e Dário Scott, Dalprat nem consegue conceber a ideia de ser pai novamente. “Acho que eu tive a minha oportunidade de ter família e a perdi”, lamenta-se com a voz embargada. Separado, não consegue se relacionar com mulheres que já são mães, nem com mulheres que queiram ter filhos. “Não quero mais me afeiçoar a uma criança imaginando que posso perdê-la de novo”, diz. No apartamento, em São Paulo, conserva na parede os desenhos que seus filhos pintaram quando ele se mudou para o atual endereço, há quase dez anos. Também carrega sempre a placa de identificação de Caio e o anel de Rafaella, recebidos durante o processo de identificação dos corpos. Depois da tragédia, trocou de trabalho, pois do antigo escritório via, todo o tempo, o subir e descer de aviões em Congonhas. “Se a dor da perda fosse uma ferida, a minha ainda estaria sangrando muito”, compara Dalprat.
MARCAS EMOCIONAIS
Ítalo perdeu os filhos Caio e Rafaella no acidente. Ele tem dificuldades de ter
um relacionamento porque tem medo de se afeiçoar a crianças novamente
Distante dali, em Fortaleza, outra ferida
que custa a cicatrizar é a da família do comandante Kleyber Aguiar Lima,
que pilotava a aeronave na hora do acidente. A razão: de tempos em
tempos, surge um fato novo que traz sobressalto e deixa à flor da pele
as emoções e os ânimos dos familiares do piloto. Em 2009, foi o
relatório da Polícia Federal, no qual Lima e o outro comandante,
Henrique Stefanini di Sacco, aparecem como responsáveis pelas mortes.
Dois anos depois, veio o livro “Perda Total” (Ponto de Leitura, 2011),
repetindo a versão. “O Kleyber era instrutor de voo da própria TAM. Como
um instrutor poderia cometer um erro primário como eles apontam?”,
revolta-se a irmã Sherydan Gomes, 42 anos. Atualmente, corre um processo
após denúncia do Ministério Público Federal no qual a responsabilidade
pela tragédia, em vez de recair sobre os pilotos mortos, é atribuída a
outras pessoas, mas o desfecho ainda vai demorar (leia quadro). Enquanto
isso, cada um, à sua ma neira e a seu tempo, descobre como reconstruir a
vida sem a presença de seu ente querido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário