3.28.2015

Profissão que mais mata fica ainda mais perigosa

Caminhoneiros passarão a dirigir por mais horas, aumentando riscos nas 
rodovias. 
Mudança é resultado do movimento que parou estradas e da pressão do 
agronegócio
Por Piero Locatelli , no Repórter Brasil
Aos 62 anos, o caminhoneiro José Pedro Carneiro passava noites acordado
dirigindo seu caminhão.
Para cumprir a jornada de trabalho necessária para pagar as contas, ele abusava
do uso de rebite,
comprimido de anfetamina tomado para não dormir ao volante. Em 5 de
janeiro deste ano,
sofreu seu terceiro infarto e faleceu.
Seu filho, Alessandro Carneiro, de 38 anos, estava acordado há trinta horas
quando contou a
história de seu pai. Em um posto de gasolina na rodovia Dutra, em Guarulhos,
 admitiu que
 seu trabalho no volante de um caminhão é mantido graças ao uso do mesmo
 remédio que matou
 José Pedro. “Se não toma [rebite], não aguenta. Não existe isso de dirigir
 tanto sem tomar,”
Longas jornadas, como a de Alessandro e José Pedro, explicam por que
 a profissão
 de caminhoneiro
 é a que mais mata no país. Foram 2.579 mortes entre 2005 e 2013, segundo
 dados do Ministério
da Previdência Social, mais que profissões ligadas à construção civil e
 à energia elétrica.
Em 2013, 291 caminhoneiros morreram atrás do volante, mais de dez por
 cento dos acidentes
fatais no trabalho em todas os setores.
Esses riscos devem aumentar no dia 17 de abril, quando entra em vigor a nova Lei
 do Caminhoneiro.
 A legislação foi uma resposta ao movimento que trancou rodovias em janeiro e
fevereiro deste ano.
 O grupo representava parte dos 2,2 milhões de caminhoneiros no país e tinha o
 apoio do setor
agropecuário. Uma de suas principais reivindicações era trabalhar mais horas por dia.
Um movimento de trabalhadores que protesta pela extensão de sua jornada pode
parecer uma
contradição. A origem desse desejo é o pagamento de comissões. O profissional ganha por
 viagens ou pelo cumprimento de metas, como a entrega de uma carga antes de um horário
 estabelecido. Quanto mais rápido rodar pelas estradas, quanto mais viagens fizer,
 mais ele recebe.
O salário de Alessandro, por exemplo, é de R$ 1.700 por mês, mas grande parte
é recebida
 “por fora”. Ele ganha 5% do valor de cada frete pago ao seu patrão, dono de
 seis caminhões.
 Trabalhar sem dormir, diz Alessandro, significa “dois ou três mil reais”
no final do mês.

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Mais trabalho, menos descanso, mais risco
Caminhoneiros se dividem sobre o aumento da jornada de trabalho. Parte deles, organizados
 em sindicatos, reclamam que a nova lei diminui a sua segurança. Do outro lado, caminhoneiros
 donos do seu próprio caminhão, os autônomos, foram a principal força favorável ao aumento,
 apoiados por empresários de logística e do agronegócio.
A Lei do Caminhoneiro, como é chamada a nova legislação, tira direitos adquiridos da Lei do
 Descanso, como é conhecida a lei anterior. A nova regra permite que o motorista dirija
12 horas em um único dia, contra dez da anterior. Além disso, o caminhoneiro só será
obrigado a parar na estrada e descansar a cada cinco horas e meia.  Antes, ele deveria
 ter intervalos de quatro em quatro horas.
A legislação antiga também obrigava o trabalhador a descansar onze horas seguidas após
cada dia de trabalho. Com a nova lei, essas onze horas podem ser distribuídas em períodos
menores. Um motorista poderá dirigir, por exemplo, após dormir somente duas ou três horas.
A segurança do trabalhador regrediu em relação à legislação anterior, segundo Renata Namekata,
 coordenadora do Grupo de Fiscalização do Trabalho em Transportes do Ministério do Trabalho
 (Getrac). “O excesso de horas na estrada aumenta a fadiga e a dificuldade de se concentrar,
colocando em risco a vida do trabalhador e de outros que passam pela rodovia”.
A distância é outro fator que agrava a situação dos motoristas. Jeferson Souza Monteiro, de
 38 anos, diz que a desorganização do seu trabalho o levou a se afastar da esposa e filhos,
 que moravam em São Paulo. “Eu fazia uma viagem para o nordeste e ficava dois, três
meses rodando. Chegava em Recife, ligava para o supervisor e ele me mandava ir para
 Fortaleza. De lá ia até o Mato Grosso e subia para Brasília. Não voltava nunca,” lembra o
 motorista. “Eu pedia ao supervisor para vir embora para casa, pois queria ver minha família,
 meus dois filhos pequenos. Só que era difícil. Tinha que arrumar uma carga para poder levar
 para São Paulo.”

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Dívidas e anfetaminas: autônomos sob pressão
A pressão para dirigir o máximo e mais rápido possível é ainda maior sobre
 os trabalhadores
 autônomos, donos de seu próprio caminhão que são subcontratados por
 transportadoras
 maiores em terceirizações muitas vezes ilegais (LINK). Como recebem
 o frete diretamente,
 a relação entre pisar mais no acelerador e receber mais dinheiro é ainda mais clara.
José Pedro era um destes caminhoneiros autônomos. Alessandro lembra
 que a pressão para
fazer viagens e pagar o financiamento do caminhão prejudicou a saúde
 do seu pai. “Meu pai
 tomava rebite para pagar o caminhão,” diz Alessandro. “Eu dizia para
 ele parar de fazer tanto
 isso, mas não tem jeito, ele tinha que pagar.”
Autônomos são cerca de 40% do total dos profissionais no país,
uma frota de 861 mil
 caminhoneiros segundo dados da Agência Nacional de Transportes
 Terrestres. Estes
 trabalhadores, junto aos seus sindicatos, foram os mais ativos nas
 greves do mês de fevereiro.
 Desta forma, o governo atendeu outras duas das suas reivindicações:
 a diminuição do
 pedágio para caminhões vazios e a suspensão por um ano do pagamento
do financiamento
 de caminhões junto ao BNDES.
O setor agropecuário também pressionou pela mudança da lei, que
 contou com o apoio de
 entidades do setor, como a Confederação Nacional da Agropecuária
 (CNA). O maior
interesse do setor é de abaixar os preços do frete, responsável por escoar
 mais de dois terços
da produção do país. Para a entidade, a lei “pode reduzir os custos de
 frete e o preço
 final dos alimentos”  e fixa regras mais  “compatíveis com a realidade do país.”
No Congresso Nacional, o projeto foi elaborado por deputados ligados ao setor.
 A relatoria era de Valdir Colatto (PMDB-SC), ex-líder da Frente Parlamentar
 Agropecuária, a bancada ruralista. O setor já pressionava contra a aprovação da
 Lei do Descanso,  e o novo projeto teve apoio unânime da bancada de 169
 congressistas.
Empresas logísticas, organizadas em sindicatos patronais, também pressionaram pela
 aprovação da lei. A Federação das Empresas de Transportes de Carga do Estado de
 Minas Gerais, por exemplo, comemorou a aprovação da lei em seu site. “A Lei atende
 todos os pleitos solicitados pelos caminhoneiros e transportadores. Isso comprova que
com a união de forças dos sindicatos e entidades, podemos alcançar ainda mais benefícios
 para o setor.”
Caminhoneiros ouvidos pela reportagem tinham argumentos semelhantes aos do
 agronegócio
 e das transportadoras. “Oito horas com caminhão carregado não roda nem 400
 quilômetros.
 Trabalhar só isso aí não tem como, é mito. E eu duvido que isso vá acontecer
 um dia.
 Se acontecer, para o Brasil, a logística não suporta,” diz o caminhoneiro autônomo
 Leonardo Teixeira, de 33 anos.
O discurso homogêneo entre patrões e empregados acontece devido à forma como o setor
 está organizado, segundo o auditor-fiscal do trabalho Ademar Fragoso Jr.
 “Se a remuneração
 é em termos de produtividade, o próprio caminhoneiro fica do lado do empregador.
 Ele enxerga que quanto mais ele trabalha, mais dinheiro vai ter. Então, quer dirigir
, não quer ficar parado,” diz Fragoso.

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“Lei da escravidão do caminhoneiro”
Entidades e órgãos públicos se mobilizam para derrubar a nova lei, que consideram um
 grande retrocesso. “Esta lei é uma das maiores violações de direitos humanos já praticada
 pelo Congresso Nacional, e com o apoio da presidência da República” , diz o procurador
 do trabalho André Melatti. “O pior é ver na mídia que a lei vai beneficiar os caminhoneiros,
 os manifestantes nas estradas. É a lei da escravidão do caminhoneiro”.
A Federação dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de São Paulo
 acredita que a mudança não atende à maioria dos caminhoneiros. Valdir Pestana,
 presidente da Federação, define a greve como um “locaute” para atender aos interesses
 dos donos de caminhões e do agronegócio.
Diante da derrota no Congresso Nacional, o Ministério Público do Trabalho e sindicatos
se mobilizam para derrubar a lei no Supremo Tribunal Federal (STF). A federação promete
 entrar com uma ação alegando a incompatibilidade da nova lei aos direitos presentes na CLT
 (Consolidação das Leis do Trabalho). Já o procurador Melatti pretende argumentar no
 STF que o Brasil não poderia retroceder em direitos sociais, conforme tratados assinados
 pelo país.
Alheio a essa disputa jurídica e trabalhando acima do permitido em todas as leis, Alessandr
 diz que a legislação “não faz diferença” na sua vida. Ele entrou na profissão influenciado pelo
 pai, há doze anos. Agora, busca outro emprego. “Não quero ir até o fim”.
Fotos: Divulgação/Senado Federal; Marcelo Camargo/Agência Brasil; Dgarkauskas/Flickr 
(CC); Marcelo Camargo/Agência Brasil.

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