A despeito do esforço midiático para despistar a plateia, as conversações grampeadas confirmam o complô e apontam seus autores
As forças parlamentar e judiciária, unidas no golpe, correm o risco de separar-se. Na encruzilhada, com quem ficariam a casa grande e a mídia nativa? |
As conversas gravadas por Sérgio Machado, e até o momento divulgadas
pela Folha de S.Paulo, imprimem novo ritmo e novo rumo à manobra
golpista que afastou Dilma Rousseff e entregou o governo interino a
Michel Temer, o arguto professor de Direito Constitucional que rasga a
Constituição.
Na semana passada permitia-me prever a provável separação entre o poder
togado e o poder parlamentar, unidos pelo e no golpe. A hipótese agora
se fortalece, e a confirmação vem da própria mídia nativa. Não folheava
os jornalões desde a aprovação do impeachment pela Câmara e a partir de
segunda 23 passei a ler suas sessões políticas.
Na terça, elegia-se Romero Jucá a bode expiatório e como questão central
apontava-se o “pacto” aventado na conversa entre Machado e o
ex-ministro para estancar a sangria desatada da Lava Jato.
A verdade factual sacramenta outra evidência, ao alcance da compreensão
até do mundo mineral: ocorrido em março passado, o fatídico diálogo é,
em primeiríssimo lugar, a prova irrefutável do golpe em marcha, e
apresenta inclusive as forças envolvidas na trama. Ali se estabelece a
premissa indispensável ao propósito do “pacto”, derrubar Dilma.
Perguntei aos meus estupefactos botões como haveria de revidar o poder
togado à ameaça do poder parlamentar. Mais, de que lado ficariam a
casa-grande e a mídia nativa. Antes que respondessem, Temer entra em
cena e joga a carta do pacote econômico do ministro Meirelles, o homem
de todas as estações, a quem certamente não faltou a colaboração de José
Serra.
De quem recordo uma frase retumbante, pronunciada na cozinha da minha
casa, durante a campanha eleitoral de 2002, enquanto jantávamos um
risotto ai porcini: “Eu sou muito mais de esquerda do que o Lula”.
Pois na tarde de terça os economistas do governo interino, vendilhões do
País, firmaram a rendição ao mais cruel neoliberismo, a doença que uma
centena de multinacionais, especuladores e rentistas impõe ao mundo para
condenar à miséria a larga maioria e enriquecer mais e mais uma ínfima
minoria. Comedida, a mídia de quarta celebra em manchetes o corte de
gastos prometido pelo pacote e deixa em segundo plano a sua essência
nefasta.
Convoco novamente os botões: por quê? Parece óbvio que uma súbita dúvida
assola a casa-grande. O caminho do golpe tenderia a bifurcar-se, e a
encruzilhada exige meditação profunda ao tornar possível, quem sabe
provável, uma escolha. Temer e o Congresso ou Moro e o Supremo? A
leitura dos jornalões induz os botões a acentuarem a gravidade do
momento e a dificuldade da opção.
Na quarta, a Folha coloca em manchete o anúncio do corte dos
gastos do governo e relega um novo diálogo dos idos de março, entre o
mesmo Machado e Renan Calheiros, a uma chamada modesta na primeira
página e relato na quarta. Soletram os botões: mais uma conversação
edificante para confirmar o golpe, o pavor da Lava Jato de quem tem
culpa em cartório e o envolvimento do Supremo na grande tramoia urdida
contra o Brasil.
A terceira conversa gravada, entre machado e José Sarney, a menos
significativa, revela apenas a intenção do ex-presidente de livrar
Machado do julgamento de Moro, ao mexer pauzinhos não declinados.
CartaCapital preocupa-se com o destino do País brutalmente
desigual e pratica o jornalismo com honestidade e fidelidade canina à
verdade factual. Fato é que o governo Lula representa a quadra mais
feliz na história do Brasil em termos de paz e bem-estar interno e
prestígio internacional.
A lição de Faoro: só a deliberação constituinte recompõe a ordem constitucional em colapso Foto: Adriana Lorete |
Dilma Rousseff não tem o carisma e o extraordinário tino político de
Lula e cometeu erros graves de pontos de vista variados. Em boa parte
manteve, porém, as políticas sociais do antecessor, ao meio de uma
situação econômica cada vez mais adversa. Além disso, trata-se de uma
cidadã correta, corajosa e muito bem-intencionada. Talvez um tanto
ingênua, murmuram os botões.
Ouço-os, a despeito do tom opaco: seria bom saber como reagiu às razões
de João Roberto Marinho, chamado em Palácio para escutar queixas em
relação à constante agressividade global, sempre disposta a inventar,
omitir e mentir.
Sustentou então o herdeiro do nosso colega Roberto não mandar nos seus
empregados jornalistas, livres de propalar o que bem entendem, e, de
resto, não ter condições de impedir o efeito manada na direção do golpe.
Que fez a presidenta? Caiu das nuvens? Respondeu à altura a tamanha
desfaçatez? De todo modo, como se deu que pudesse esperar por outro
comportamento?
Cabem mais interrogações: que disse Dilma ao chamar o presidente do STF
para discutir as posições do Supremo na perspectiva do golpe e ouvir a
reivindicação de aumento de salário? A situação se apinha de dúvidas e
incógnitas. Por exemplo. Os efeitos do pacote econômico, bastante
agradáveis para a casa-grande, são altamente daninhos para um povo
acostumado há tempo a manifestar sua insatisfação por ruas e praças.
Outra incógnita diz respeito ao inter do processo de impeachment, a
prever no espaço máximo de 180 dias a sessão definitiva do Senado,
presidida pelo ministro Lewandowski, não se sabe se já premiado pelo
invocado aumento.
Na entrevista a CartaCapital da edição passada, a presidenta
afastada referia-se à possibilidade de conquistar seis votos no Senado,
de sorte a invalidar a maioria que a afastou. De fato, basta reverter
dois votos em relação ao resultado da primeira sessão. A chance não
teria crescido diante dos últimos, surpreendentes eventos?
Há quem volte a falar em eleições gerais antecipadas, quem sabe para
outubro de 2017. Solução sensata demais para ser viável. Ideal mesmo,
declaram soturnamente os botões, seria refundar o Brasil, tão favorecido
pela natureza e infelicitado fatalmente por uma dita elite, prepotente,
arrogante, hipócrita, corrupta, egoísta e incompetente. Ah, sim,
ignorante. E movida a ódio de classe.
Abandono-me ao devaneio ao imaginar a convocação de uma Constituinte
finalmente exclusiva. E me vem à memória a lição de Raymundo Faoro,
contida em um dos seus livros mais recentes, A Assembleia Constituinte – A legitimidade recuperada.
Comenta Faoro a crença de que “só revoluções vitoriosas podem convocar
Constituintes”. E emenda: “Na verdade, sempre que há crises ou colapso
de uma ordem constitucional, ela só se recompõe pela deliberação
constituinte, a deliberação constituinte do povo, se democrático o
sistema a instituir”.
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