8.13.2010

POR UMA VIDA MAIS SIMPLES

CRISTIANE SEGATTO
Na volta de uma viagem inesquecível, só o corpo entra no avião. A alma resiste. Vem a nado. Isso explica por que demoramos tanto para aceitar o retorno à rotina. É assim que uma amiga da minha cunhada define o tipo de descompasso que vivo quando minhas férias acabam. Fico meio lá, meio cá, meio fora do tempo e do espaço. Você também é assim? Desta vez essa sensação foi muito forte. Tive a felicidade de concretizar uma viagem que planejava há vários anos. Eu, o Dante e a Bia (nossa filhota de 10 anos) curtimos grandes e pequenos momentos em três cidades especiais: Roma, Taormina (uma pequena joia siciliana à beira do Mediterrâneo) e Paris. Trouxe muita coisa dessa viagem. Descobertas, casos divertidos, sensações únicas e quase nenhum bem material. Se tem uma coisa que admiro nesses novos tempos é o movimento que prega uma vida mais simples e menos consumista. Talvez ele não seja original, mas é muito oportuno. Combina demais com as preocupações econômicas, ambientais e de saúde que enfrentamos atualmente. Em vez de esbanjar e ostentar, é hora de viver com mais tempo e com menos necessidades. Isso vale para as viagens e para o dia-a-dia. É hora de desacelerar, de se desintoxicar do consumismo e de enxergar o valor dos pequenos prazeres. Quem viaja ganha mais quando deixa para trás a obrigação de conhecer pontos turísticos abarrotados, comprar sem saber por que e fotografar sem sequer enxergar. Vale mais conhecer menos destinos, mas aproveitar de verdade a passagem por eles. Para viajar e voltar ao Brasil melhor do que éramos, é preciso andar à toa, se perder, mergulhar na cultura local. E, principalmente, sentir. De Roma, trouxe a lembrança do pêssego carnudo compartilhado na Praça do Vaticano. De Taormina, o sabor incomparável dos tomates sicilianos. De Paris, a vontade de ocupar os espaços públicos como os franceses ocupam. Em Paris, a praça é do povo. Na hora do almoço ou no final do dia, as áreas verdes são ocupadas como se deve. Os parisienses são livres o suficiente para aproveitar os dias de verão com naturalidade. Deitam na grama, tomam sol, abrem pequenos potes ou desembrulham sanduíches e almoçam ao ar livre. Depois conversam, relaxam, namoram. Sabem enxergar e aproveitar esses pequenos momentos de prazer.
Saiba mais
Há muitas praças em Paris – grandes, pequenas, com brinquedos criativos para as crianças, piso emborrachado embaixo deles e nenhuma placa nos proibindo de pisar na grama. Estar na praça é um grande programa. Não dá vontade de ir embora. Eu ficava ali, olhando e me perguntando por que em São Paulo a nossa relação com o espaço público é diferente. No dia em que resolvemos caminhar sem rumo pelo Marais (um bairro charmoso, cheio de bistrôs, pequenos ateliês e gente jovem nas ruas) fomos parar na Place de Vosges, considerada uma das mais belas praças do mundo. É impossível não ser tocado pela arquitetura das construções que circundam a praça há 400 anos. A simetria é perfeita. São 36 casas (nove de cada lado da praça) de tijolo e pedra com telhados de ardósia e janelas altas sobre galerias cobertas. Ao longo dos séculos, a praça abrigou muitos eventos históricos. Um torneio de três dias celebrou ali o casamento de Luís XIII com Ana da Áustria em 1615. O escritor Victor Hugo morou em uma daquelas casas durante 16 anos. Hoje quem trabalha ou estuda na região não perde a chance de fazer uma pausa e se esparramar naquela grama. Enquanto o sol bate no rosto, o corpo relaxa, a mente viaja. Esse estilo de vida – simples e livre – é o oposto daquele que muita gente cultiva em São Paulo. A cidade, de uma forma geral, ainda é obcecada por valores como posses, aparência e fama. Esses valores se manifestam de várias formas, inclusive na falta de valorização de espaços públicos gratuitos e democráticos como são as praças. Voltei de Paris achando que eu preciso morar lá. Nem que seja por uma curta temporada. Quem não quer, não é mesmo? Não é difícil encontrar motivos para justificar essa minha vontade, mas a dureza de São Paulo contribui para isso. Nunca precisei de grandes acontecimentos para ser feliz. Deitar na grama e ler um livro é um programa que me dá um prazer enorme e não me custa um centavo. Hábitos como esse constroem a vida simples que nos ajuda a viver melhor. Mas em São Paulo é preciso ser persistente para conseguir isso. A área verde mais próxima da minha casa é o Parque da Água Branca, em Perdizes. É um enclave verde a poucos metros do horroroso Minhocão e do centro da cidade. Quando entro ali, esqueço da vida. Ou melhor: encontro a verdadeira vida. Nos últimos anos, porém, inventaram uma regra que me afastou do parque. É proibido estender uma toalha na grama, deitar sobre ela e ler um livro. O problema não é só a grama. Também é proibido deitar nos bancos de madeira. Tentei fazer isso em várias ocasiões. Sempre aparece um segurança que acaba com o meu prazer. Vou embora, com o livro debaixo do braço, praguejando contra a insensibilidade do burocrata que inventou essa regra e não percebe que a praça é do povo – e não dele. Tenho um caso de amor antigo com o Parque da Água Branca. Cresci ali, mas fui obrigada a desistir dele. Agora só frequento o Villa-Lobos, que está cada vez melhor. As árvores cresceram e há várias novidades. Uma delas eu conheci no domingo e fiquei comovida. É um cantinho chamado de Ouvillas. Quinze caixas de som dispostas em círculo tocam as obras do compositor Heitor Villa-Lobos. Quem quiser deitar na grama, é bem-vindo. Quem quiser tomar sol, é bem-vindo. Quem for mais exigente e quiser mais conforto, é bem-vindo. Dez espreguiçadeiras de madeira e doze bancos foram colocados ali para garantir ao visitante prazer e relaxamento com música da mais alta qualidade. Não sei de quem foi a ideia de criar o Ouvillas. Só posso dizer que ela é genial. Quem inventou o Ouvillas entendeu perfeitamente qual deve ser o papel do administrador de uma área pública de lazer. Com um investimento muito pequeno, o parque oferece diariamente a centenas de pessoas a chance de sair dali melhor do que entraram. No domingo, deitei no banco. Depois estendi uma toalha na grama. Depois aproveitei a espreguiçadeira. Fiquei no sol, fiquei na sombra, rabisquei ideias para essa coluna. Parecia criança em dia de Natal. Queria me certificar de que tinha direito a todos aqueles presentes. Minha filha e uma amiguinha também se esbaldaram: correram, rolaram na grama, deitaram de papo pro ar e tiveram contato com a música de um grande mestre. Assim como em Paris, no Villa-Lobos a praça é do povo. Saímos de lá levinhas. Com a certeza de que a vida só pode ser bem vivida se for simples.
Revista Época

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