Há 50 anos, mudei de casa e minha filha era pequena. Minha mãe se deu ao
trabalho de dar a volta no quarteirão batendo de porta em porta para
ver se tinha criança da idade da Gabi. Eu que não ia viver em um lugar
onde minha filha ficasse isolada...
Na minha infância, o muro entre as casas não afastava, era um ponto de
encontro. A calçada da frente era para brincar de amarelinha, jogar
pedrinha e trocar novidades.
Relações de vizinhança eram alimento da vida. Ninguém tinha medo de ser
invadido, o código de conduta era interiorizado por todos.
Conversar era conversar, mas assunto algum invadia o horário das
refeições. Isso não era dito, era da natureza das relações, que
precisavam ser protegidas, pois vizinhos eram vizinhos por muito tempo.
Não tinha isso de ficar mudando de casa. A vizinhança era uma grande
família.
Na década de 50, quando apareceu em nossa vida o aparelho de TV, algumas
coisas começaram a mudar. Surgiu o televizinho, que também não aparecia
em horário de refeição. O horário da família era sagrado. Logo a TV
conseguiu vaga na vida de quase todos, tirando das calçadas as crianças e
os adultos que papeavam nas portas.
Daí a se orgulhar de não conhecer ninguém é quase um salto para um vazio afetivo.
Receitas, conselhos e palpites atravessavam as fronteiras das casas,
antigamente. Conheciam-se as fraquezas dos filhos, a infidelidade de
maridos... Mas esses assuntos não eram verbalizados.
A intimidade era respeitada, pois, quando isso não acontece, as relações
se ressentem. É sempre melhor falar sobre a minha goiabeira que ainda
não deu flor quando a sua já deu do que arriscar o bem viver por uma
fofoca.
Esse código de conduta vinha testado e era levado a sério. As relações
de vizinhança mantinham-se por vidas. Pouco se perguntava, quase nada se
palpitava e o que se percebia ficava com a gente: não era falado nem na
frente nem pelas costas.
Hoje, isso virou fumaça.
Relações entre vizinhos são efêmeras como os endereços, neste mundo onde
predomina a mobilidade. Mudamos de bairro, de país, como se nada
houvera. Se é bom, se é ruim, não sei. Tudo apenas está diferente.
Lembrar do passado não é obrigatoriamente querê-lo de volta. A memória
nem sempre serve ao saudosismo. No caso da vizinhança, ela foi
importante no tempo em que comunicações interpessoais tinham limites
estreitos. Não havia internet, Skype ou telefone celular --o fixo era
raro e caro. O telegrama era o último recurso para comunicar urgência e
emergência.
Anna Veronica Mautner psicanalista
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