10.12.2012

Um passo para curar lesões da medula



por Alysson Muotri |


O rapaz da foto ao lado não é apenas mais um cadeirante. É o cientista Paul Lu, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), que assina um recente trabalho cientifico, talvez o de maior impacto na área de regeneração de lesões da medula espinhal, publicado neste ano pela revista “Cell”.
Encontrei-me com Paul a primeira vez quando fazia uma entrevista para uma vaga na UCSD em 2001. Paul já trabalhava com o grupo de Mark Tuszynski, um dos mais feras na área de regeneração de lesões medular usando células-tronco. Paul entrara para o grupo de Mark após ter sido atropelado por um carro em uma visita a San Diego. A mudança de estilo de vida fez com que a motivação de Paul se direcionasse para a grande promessa da medicina regenerativa: o uso de células-tronco como fonte de reposição dos neurônios degenerados durante acidentes desse tipo.
O trauma da medula espinhal é basicamente uma lesão na medula espinhal, diretamente na medula ou indiretamente através de lesões em ossos, tecidos ou vasos sanguíneos adjacentes. Quanto mais perto do pescoço, maior o impacto da lesão, atingindo membros superiores e inferiores. Pelo que sabemos através de modelos animais, assim que a lesão atinge a medula espinhal, temos o rompimento dos nervos que atravessam a região, levando à desconexão dos membros com o cérebro, resultando em paralisia. Esse processo é rápido, acontece em dias. Além disso, o sangramento, o acúmulo de líquidos e o inchaço podem ocorrer dentro ou fora da medula espinhal – mas dentro do canal espinhal. O acúmulo de sangue ou líquidos pode comprimir a medula espinhal e lesioná-la, piorando ainda mais o quadro. Como se não bastasse, a morte dos neurônios estimula um processo inflamatório que impede o crescimento de novos neurônios na região. Esse ambiente hostil tem sido o grande impedimento do uso de células-tronco como alternativa terapêutica, pois as células transplantadas para a região da lesão não conseguem se especializar em neurônios funcionais.
Estudos anteriores haviam se utilizado de células-tronco neurais adultas, ou seja, isoladas diretamente do sistema nervoso, como fonte de células para transplante. Essas células podem ser encontradas em biópsia de tecidos olfativos ou de cérebro de fetos abortados e doados para pesquisa. A grande sacada de Paul foi utilizar células embrionárias, com um poder de diferenciação maior. Paul utilizou células extraídas do cérebro embrionário de animais e as transplantou em ratos que tiveram a medula espinhal totalmente lesada. Ele observou que, ao contrário das células-tronco adultas, as embrionárias conseguiam se diferenciar de forma muito eficiente, gerando neurônios que conseguiram atravessar a lesão e estender processos neuronais, conectando-se de forma funcional com o outro lado da lesão, recuperando a transmissão do impulso nervoso pela medula. Os animais transplantados recuperaram a sensibilidade e passaram a se movimentar depois de um tempo.
Para provar que o sistema funcionaria em humanos, Paul decidiu usar células-tronco embrionárias humanas. Os resultados foram ainda mais impressionantes. A plasticidade das células humanas não deixou a desejar e também fez os animais recuperarem a atividade motora. As imagens do trabalho mostram que o numero de neurônios formados após o transplante é muito superior ao que era conseguido com células-tronco adultas. Isso sugere que a capacidade de se especializar em neurônios, mesmo num ambiente não muito receptivo, é superior quando a célula-tronco é mais imatura. Provavelmente, essas células seriam as melhores para tratamento de lesões da medula em humanos. Obviamente, um cuidado a ser tomado é a ocorrência de teratomas, ou tumores de origem embrionária, que podem se originar a partir de células-tronco não especializadas que, por ventura, sobrevivam após o transplante. De qualquer forma, esse tipo de efeito colateral pode ser controlado com drogas que atingem apenas as células-tronco imaturas, em divisão.
O trabalho de Paul dá um passo importante para a medicina regenerativa. Identifica a melhor fonte de células-tronco e as condições ideais para esse tipo de transplante. Os ensaios clínicos em humanos deverão começar em breve. Vale a pena contrastar esse tipo de estratégia com a que foi proposta pela empresa californiana Geron um tempo atrás. A Geron apostava em transplante de células neurais precursoras capazes de produzir mielina – a barreira de gordura que protege os neurônios. O objetivo era o de evitar a degeneração dos neurônios sobreviventes, e não a regeneração da lesão. Com resultados pré-clínicos muito menos claros que os descritos por Paul, a Geron conseguiu a aprovação do FDA para testes em humanos, mas a empresa acabou falindo antes de concluir esses ensaios. Baseando-se nos dados do Paul, é possível prever que os transplantes da Geron em humanos não seriam bem sucedidos.
A primeira descrição de uma lesão medular da espinha e sua consequência para um ser humano está num papiro egípcio com mais de 3,5 mil anos de idade. O documento descreve claramente os sintomas clínicos e os efeitos traumáticos de uma tetraplegia. Também diz que esse tipo de lesão é incurável. É irônico imaginar que tanto tempo depois, um passo importante para o tratamento e eventual cura de lesões desse tipo venha justamente de um cadeirante.

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