Francisco protagoniza mais uma
iniciativa inédita na Igreja Católica: elimina intermediários e envia
questionário que pergunta aos fiéis o que eles pensam sobre casamento
gay e casais em segunda união, entre outros temas
João Loes
Anotícia causou estranhamento até entre
os mais experientes estudiosos da Igreja Católica. No início do mês,
começaram a circular informações de que o Vaticano havia enviado às
conferências episcopais de todo o mundo um questionário a ser respondido
pelo maior número possível de fiéis. E o que começou como rumor logo se
confirmou. Nas 38 perguntas do documento, todas focadas na família,
estão questões que tratam de temas como a união entre pessoas do mesmo
sexo, a vida de casais em segundo casamento, a coabitação antes do
matrimônio e o uso de métodos contraceptivos, entre outros. Reunidas, as
respostas serão remetidas à Roma para servirem de base para as
discussões da Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos de
2014, em outubro, que terá como tema “Os desafios pastorais da família,
no contexto da evangelização”. “O papa Francisco quer conhecer a
realidade concreta das famílias – as que estão bem e as que estão mal”,
disse dom Vicenzo Paglia, arcebispo italiano e presidente do Pontifício
Conselho para a Família, durante viagem pelo Brasil, na semana passada.
VOX POPULI
Francisco no meio da multidão, na Praça de São Pedro:
o papa não quer discussões teóricas, prefere ouvir os anseios
da comunidade católica, para aflição de muitos padres e bispos
Não é sempre que o Vaticano dá ouvidos, de maneira tão direta, aos
seus fiéis. Segundo especialistas, desde a criação do Sínodo dos Bispos,
no final do Concílio Vaticano II, em 1965, essa é a primeira vez que
isso acontece. Em outras ocasiões, para saber o que pensavam os fiéis, a
Igreja costumava contar com levantamentos feitos por padres e bispos,
que invariavelmente filtravam a realidade, mesmo que inconscientemente.
“Deve ter muito religioso assustado, não só com as perguntas do
questionário, mas com o fato de que o papa espera ouvir os fiéis sem
intermediários”, afirma Fernando Altemeyer, professor do departamento de
teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica
(PUC) de São Paulo. Para Altemeyer, o questionário é importante por
explicitar o que ele entende como uma grande mudança na forma de agir da
Igreja.
Até o fim do papado de Bento XVI, quando o Vaticano decidia fazer um
comentário sobre a vida dos católicos, um intelectual, geralmente com
profundo saber teológico e doutrinário, redigia um documento recheado de
elucubrações teóricas e o apresentava à Santa Sé, que o avaliava,
editava e, então, o submetia aos fiéis. Pouco importava se o conteúdo do
que fora escrito estivesse em absoluta dissonância com a realidade da
vida da comunidade. O papa, em sua infalibilidade (dogma promulgado no
Concílio Vaticano I, 1869-1870), sabia o que era melhor para seu
rebanho, mesmo conhecendo pouco dele. Com o anúncio do Censo de
Francisco, esse modus operandi dá sinais de que pode estar mudando. “É a
retomada de um método de trabalho consagrado no mesmo concílio que
criou o Sínodo dos Bispos – o de primeiro ver, para depois julgar e só
então agir”, diz Altemeyer. “Vivíamos um tempo em que só se julgava e
agia.”
FAMÍLIA
Católicas praticantes, Cristiana Serra e Juliana Luvizaro têm
muitas esperanças na igreja de Francisco, mais colegiada
e menos monárquica, para a comunidade gay
Era de se esperar que, para os católicos gays, por exemplo, a notícia
de um questionário que parece querer ver e entender esse grupo antes de
julgá-lo fosse recebida com alegria. Mas, ainda que comemorada, a
inclusão de uniões entre parceiros do mesmo sexo como tema no
questionário de Francisco é vista com cautela. “Nossa experiência com a
igreja nos faz agir como gatos escaldados”, diz a psicóloga carioca
Cristiana Serra, 38 anos, gay, católica e membro do grupo “Diversidade
Católica”, que trabalha para dar subsídios teológicos que ajudem a
conciliar homossexualidade e fé. Cristiana diz que vê, no interesse de
Francisco em fazer uma igreja mais colegiada e menos monárquica, um
caminho para mudanças positivas para a comunidade católica gay. Mas
supor que a opinião dos fiéis terá força para mudar alguma coisa já é um
pouco demais. Sua mulher, porém, parece mais otimista. “Sou apaixonada
pelo papa Francisco”, diz a confeiteira carioca Juliana Luvizaro, 33
anos, há cinco casada com Cristiana. “Ele entende a força e a
centralidade da mensagem de amor do Novo Testamento, além de aceitar que
esse amor nem sempre se manifesta dentro das expectativas da
sociedade”, diz.
Quem também conta com o amor como grande aliado para enfrentar a dura
realidade de viver uma vida conjugal irregular aos olhos da igreja são
os casais em segunda união. Unidos pelo matrimônio, divorciados
civilmente e, posteriormente, em nova união, eles ficam proibidos de
receber qualquer sacramento, inclusive a penitência, ou confissão, e a
eucaristia. No questionário de Francisco, nada menos que cinco perguntas
são dedicadas à exploração da realidade de quem vive nessa condição.
“Sofro por não poder receber os sacramentos, mas sigo a determinação da
Igreja e fico feliz por respeitar a doutrina”, diz Cecília di Ciero de
Oliveira, 54 anos, divorciada desde 2008 e hoje vivendo uma vida de
casada com Roberto de Oliveira, 63 anos. Logo que se separou, Cecília se
afastou da comunidade que frequentava, na cidade de Itu, interior do
Estado de São Paulo, por causa das fofocas e da crueldade de parte dos
leigos da paróquia. Hoje, porém, ela não só voltou à Igreja, como
participa ativamente da comunidade. “É esse envolvimento completo, que
vai além da frequência em missa, que aproxima o fiel de sua missão”, diz
João Bosco Oliveira, 76 anos, autor de dez livros sobre a vida de
casais nessa situa-ção e fundador da Pastoral de Casais em Segunda
União, hoje com mais de três mil grupos espalhados pelo Brasil.
"Não podemos falar que tudo é família.
Se tudo é família, nada é família"
Dom Vicenzo Paglia, arcebispo italiano e presidente do Pontifício Conselho
para a Família, questionado sobre o batismo de filhos de casais gays
Não se sabe ao certo o que será feito com os resultados dessa extensa
pesquisa. No longo texto que introduz o questionário, fala-se, em tom
alarmante, da “crise social e espiritual” contemporânea e de “como são
urgentes os desafios apresentados à evangelização pela situação atual”.
Mas a agenda estabelecida pelo mesmo documento para discussão desses
resultados não mostra tanta urgência. Segundo consta, no Sínodo de
Bispos de 2014, os resultados da pesquisa serão apenas apresentados.
Eventuais decisões no sentido de “procurar linhas de ação para a
pastoral da pessoa humana e da família” ficarão para o Sínodo de 2015.
“O sínodo tem força pastoral – ele não vem para mudar doutrina, porque
isto não cabe a ele”, diz o padre Wladimir Porreca, assessor nacional da
Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e Família da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Mudanças no papel dos sacramentos
também estão fora de questão”, afirma Porreca, que diz, ainda, não ser
concebível elevar a união entre duas pessoas do mesmo sexo à condição de
família. A afirmação faz eco a outra declaração de dom Vicenzo Paglia.
“Não podemos falar que tudo é família. Se tudo é família, nada é
família”, cravou. As coisas mudam lentamente na milenar instituição de
Roma. Mas mudam. E ninguém discute que o censo de Francisco talvez seja
um dos mais poderosos sinais de transformação desde que o argentino
assumiu o trono de Pedro.
PECADO
Cecília di Ciero de Oliveira e Roberto de Oliveira são um dos milhares
de casais católicos em segunda união que frequentam as paróquias
do País e são impedidos de comungar e confessar
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