9.11.2012

‘O passivo da saúde pública do século passado tem de ser enfrentado’

por *Tania Araújo Jorge

Doenças como hanseníase, leishmanioses, tuberculose e Chagas são não só decorrentes, como promotoras da pobreza e devem estar no foco da agenda de pesquisa em saúde do país. Quem chama a atenção para essa demanda é a médica e pesquisadora Tania Araújo-Jorge, diretora do Instituto Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz voltada a pesquisa, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços de referência para diagnóstico de doenças infecciosas e genéticas e controle de vetores. Para Tania, as ações do Brasil para reduzir as doenças infecciosas têm sido produtivas e a curva é descendente. O quadro, no entanto, ainda requer visibilidade e atenção. “As doenças têm grande impacto no desenvolvimento da vida adulta durante uma fase longa e crônica. Comprometem a capacidade de gerar renda e a qualidade de vida”, analisa Tania, em entrevista à Radis.

Por que chamar as doenças negligenciadas, tais como malária, leishmaniose visceral e doença de Chagas, de doenças promotoras, e não só decorrentes, da pobreza?
As doenças negligenciadas sempre foram consideradas decorrência da situação de pobreza. Em tese, com o aumento da renda haveria o fim dessas doenças. Mas há uma percepção cada vez maior de que elas não só decorrem como realimentam a pobreza. Não são infecciosas agudas, têm grande impacto no desenvolvimento da vida adulta durante uma fase longa e crônica. Comprometem a capacidade de trabalho, a capacidade de gerar renda, a qualidade de vida. Contribuem para alimentar os determinantes sociais da doença e a própria pobreza, na medida em que para se gerar riqueza tem que se estar ativo no mercado de trabalho. A partir de um estudo econômico, constatou-se que essas doenças não só são consequência da pobreza como também são causa dela. Não é um conceito novo, é apenas uma revisão do conceito com a integração de causa e consequência.

Como o governo deve lidar com essa questão?
As políticas públicas de controle da pobreza, que são a prioridade número um do governo Dilma, não podem deixar de lado o foco no controle das doenças infecciosas mais antigas. O passivo da saúde pública do século passado tem de ser enfrentado neste século. Nos países desenvolvidos, como Canadá e Estados Unidos, e os europeus de modo geral, doenças como hanseníase e tuberculose foram controladas pela melhoria da qualidade de vida, da habitação, do transporte, pelo aumento do próprio padrão socioeconômico da população. No Brasil, um conjunto multifatorial de problemas gera pobreza e doenças, num ciclo que se realimenta. Esse quadro se coloca tanto para as doenças infecciosas quanto para a desnutrição — que também era vista como decorrência da pobreza, mas é geradora de mais pobreza na medida em que reduz a capacidade de progresso individual. As políticas públicas de controle da pobreza deveriam elevar o combate a essas doenças a um patamar de atenção e de investimento mais alto. Estamos chamando a atenção do Governo Federal para a necessidade de articular as políticas, não só a fim de reduzir consequências da pobreza, mas também de reduzir causas da pobreza.

O desafio de controlar essas doenças não foi colocado no PAC da Saúde, no Mais Saúde, nem na campanha eleitoral. Como inserir esse tema na agenda do governo?
Evidentemente, é pelo próprio Ministério da Saúde que esse debate tem que começar — e começou. Em dezembro de 2010, a questão foi levantada no encontro que comemorou os dez anos do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, que agora está revisando a agenda nacional de temas prioritários para pesquisa em saúde. Nessa reunião, a discussão ganhou corpo. Os pesquisadores concordaram em que a desnutrição e as doenças infecciosas são geradoras de pobreza e passaram a enxergá-las como oportunidade de articular desenvolvimento social com saúde em questões que atingem diretamente segmentos pobres da população. Não atingem a sociedade como um todo, mas a população brasileira que mais necessita de cuidados. A ideia é que a gente bata e rebata esse ponto, de modo a dar visibilidade a ele.

Qual é o quadro atual dessas doenças no Brasil?
Tuberculose, hanseníase e leishmanioses são as que preocupam mais, mas existe um conjunto de outras — Chagas, filariose, oncocercose. Algumas não podem ser erradicadas, na medida em que interpõem ciclos complexos de transmissores, de vetores, mas podem ser controladas com boas políticas. Mais de 100 milhões de brasileiros ainda convivem com essas doenças. Dois milhões têm esquistossomose, 500 mil têm leishmanioses, quatro milhões são portadores de doença de Chagas crônica, mais de 75 mil, de hanseníase, e 93 milhões têm outras verminoses. Registram-se 300 mil novos casos de malária por ano. O Brasil tem dado passos grandes no controle da transmissão vetorial da esquistossomose e da doença de Chagas, tendo o tratamento dos casos crônicos como desafio maior nesse campo. Já as leishmanioses e a tuberculose não estão tão bem controladas. É preciso identificar nossas fragilidades e enfrentá-las adequadamente: pautá-las como políticas públicas, com necessidade de financiamento tanto para pesquisa quanto para intervenção em campo.

Como está esse debate no mundo?
Essa não é uma preocupação só do Brasil, mas mundial. A Organização Mundial da Saúde está trabalhando em um relatório global sobre o impacto dessas doenças em todo o mundo e sobre as prioridades de pesquisas. Esse trabalho dura mais de dois anos e envolve cerca de 150 especialistas. Eles listaram 15 doenças que devem ser foco dos governos em países endêmicos. O grande problema é: não podemos ficar à mercê da vontade de indústrias farmacêuticas internacionais e países desenvolvidos de investir nessas doenças. Elas não são prioridade para um conjunto de países no mundo. A ideia é inverter a lógica de quem define a prioridade. Até agora, essas doenças foram negligenciadas na agenda de investigação, de desenvolvimento de novos medicamentos, novas estratégias e novas abordagens ou mesmo de aplicação de abordagens adequadas já existentes. Às vezes já se tem a solução, mas não se consegue o controle. É preciso trabalhar com pesquisa para inovação, mas também com pesquisa para implementação de estratégias.

O relatório ‘Saúde Brasil 2009’ mostra o crescimento das doenças crônicas e a diminuição das doenças infecciosas. Qual é o critério para definir as prioridades de pesquisa?
A agenda de pesquisa é muito complexa porque, por exemplo, a redução das doenças infecciosas não se dá da mesma maneira em todas as regiões do país. A aids tem sido reduzida no Brasil de modo geral por uma adequada política de controle, mas no Nordeste está aumentando. Esse é apenas um dos aspectos que temos de considerar na complexidade que é este país. Outro é a superposição de doenças infecciosas com doenças crônicas: há cardiopatas com doença de Chagas que têm hipertensão e obesidade. Seria ótimo se uma [crônica] existisse sem a outra [infecciosa], mas quando registramos as duas precisamos lutar nas duas frentes. As ações do Brasil para reduzir as doenças infecciosas têm sido muito produtivas, a curva descendente é clara. Eram a segunda causa de mortalidade infantil e já não são mais; foram tão bem controladas no atendimento natal e perinatal que hoje a segunda causa de mortalidade infantil são as doenças genéticas, as más formações congênitas, com incidência que antes parecia pequena devido à mortalidade por infecções no primeiro ano de vida. Mas não se pode desligar o alarme: é preciso olhar a saúde como um problema complexo, sistêmico, com toda diversidade que se tem no país.

O que falta para a pesquisa nessa área: investimento, prioridade?
Um pouco dos dois. A prioridade dita o investimento, mas quem dita a prioridade? Essa é a discussão. Em determinados momentos, tem-se um financiamento externo “para investir em obesidade”. O dinheiro vem para isso e a pesquisa tem que ser sobre isso. Se os países endêmicos, e o Brasil em especial, não pautarem as doenças infecciosas da pobreza como prioridade, o investimento não vem para isso. Tanto o investimento de fora quanto o de dentro dependem da definição de prioridades. Por isso, a discussão da agenda de prioridades de pesquisa em saúde é tão importante. É essencial sua atualização pelo ministério, regularmente a cada dois, três, quatro anos. O ministério está atualizando agora a agenda que saiu em 2005.

Se não é possível erradicar todas essas doenças, quais seriam as metas de controle a se atingir?
Existe um protocolo firmado com a Organização Pan-Americana da Saúde referente a todas as doenças que são passíveis de controle em curto e médio prazos, que inclui a identificação das lacunas de conhecimento.
Toda essa discussão toca na participação da saúde no desenvolvimento econômico do país...
No governo Lula, a saúde foi incluída na agenda de desenvolvimento econômico — o complexo produtivo e industrial da saúde e todo o movimento de recursos, de volume de pessoas trabalhando, de aportes de serviços e de novos produtos que envolvem o conjunto da saúde. Costuma-se dizer que, se as importações do Brasil parassem hoje, teríamos uma parada completa de todos os CTIs e de todos os laboratórios de diagnóstico, pois todo o material é importado. É um grau de dependência muito forte que o país tem e, evidentemente, todas essas necessidades devem entrar na agenda do desenvolvimento. Nós temos que falar dessa questão, da geração de pobreza a partir das doenças, com os interlocutores do campo do desenvolvimento econômico.

E quanto à participação da saúde para a erradicação da miséria?
A miséria é o determinante central da saúde de qualquer povo, seja na Índia, na China, no Brasil ou no Haiti. Então, todas as políticas que controlarem ou reduzirem a miséria em um país são promotoras de saúde, numa ligação absolutamente direta. As políticas para melhoria das condições de saúde também têm impacto no desenvolvimento social. É uma roda, é um circulo. Por isso é que eu digo que essa não é só uma questão de causa e efeito, é uma inter-relação. Para controlarmos, temos que olhar a partir de todos os ângulos.

*Tania Araújo-Jorge

 É pesquisadora do IOC desde 1983, tem uma trajetória de grande envolvimento institucional. Participou de diversas comissões e grupos de trabalho da Fiocruz, como as Câmaras Técnicas de Ensino, grupos de trabalho da presidência sobre regimento da Pós-Graduação lato sensu e de Educação Científica.
Foi delegada do IOC nos quatro Congressos Internos da Fiocruz, e representou o Instituto na organização de alguns desses congressos. Foi da Diretoria da ASFOC em 98 e 99. Criou, em 1991, um dos mais produtivos laboratórios do IOC, o laboratório de Biologia Celular; foi chefe do Dept. de Ultra-Estrutura e Biologia Celular por 6 anos e chefe substituta por mais dois.
Ajudou a criar a Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular, e a Pós-Graduação de Ensino em Biociências e Saúde. Tania é médica, com mestrado e doutorado pelo Instituto de Biofísica na UFRJ orientada por Wanderley de Souza e Maria de Nazareth Meirelles. Fez pós-doutorado na ULB e no INSERM. É conhecida por sua garra, força de argumentação e debate, sempre focada na defesa dos interesses institucionais.

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