- O que os esportes de risco podem ensinar sobre melhora de performance, felicidade e controle das emoções
Flávia Milhorance
RIO - Um surfista que domina uma onda de 30 metros. Um paraquedista
que, num salto, atinge a velocidade de 552 quilômetros por hora. Uma
ultramaratonista que percorre, entre montanhas de até 1.700 metros, um
total de 217 quilômetros numa corrida. Ou um campeão de Fórmula 1 que
muda das pistas automobilísticas para as de gelo. Atletas de alta
performance que se colocam em situações limite e deixam os simples
mortais invariavelmente a se questionar: “afinal, por quê”? A resposta
imediata costuma ser a velha conhecida: “por causa da adrenalina”, um
hormônio e neurotransmissor que prepara o organismo para ações de grande
esforço e risco, agindo como um estimulante natural e que é, além
disso, viciante. A razão, entretanto, vai além.
Uma teoria um pouco mais sofisticada que vem ganhando peso sugere que estes atletas, quando absorvidos por uma atividade arriscada, liberam substâncias neuroquímicas que os fazem atingir um estado de consciência chamado fluxo (ou “flow”, como é mais conhecido). Geralmente é descrito como um estado de plenitude, onde é possível agir com um desempenho ótimo, sem nem pensar sobre isso; um sentimento de imersão seguido de êxtase. Os detalhes deste processo estarão no livro “The rise of superman” (“A ascensão do super-homem”, em tradução livre), do jornalista Steven Kotler, que será lançado nos Estados Unidos em março; e no Brasil, provavelmente, até o fim do ano.
Poucos são os atletas que conhecem o flow. Mas basta começar a explicar do que trata que as experiências surgem:
- Eu chamo isso de portal. Não é sempre, mas é como se algo diferente acontecesse em determinado ponto da corrida. É como se eu planasse numa onda, numa sensação de ausência, mas consciente. Não me sinto cansada, porque o corpo praticamente desaparece - conta a ultramaratonista Magda Andrade que, entre sexta-feira e sábado, percorreu os 217 quilômetros da ultramaratona “Brazil 135”, que corta montanhas da Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas Gerais.
Para se ter ideia, a corrida está entre os percursos mais difíceis do mundo e em pé de igualdade com as ultramaratonas Badwater, no Vale da Morte, na Califórnia, e da Arrowhead 135, em Minnesota, nos EUA. Na primeira, as temperaturas se aproximam dos 50 graus Celsius, enquanto que na segunda, dos 20, porém negativos.
O ‘flow’ surgiu na década de 70
O termo foi introduzido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, da Universidade de Chicago, ainda na década de 1970. Curiosamente, naquele período, ele foi aplicado a atividades que nada têm de arriscadas, e sim criativas: de artistas e cientistas; posteriormente, de executivos. Csikszentmihalyi costuma citar, inclusive, a entrevista de um compositor para defender sua tese: “Você está num estágio estático a tal ponto que você sente quase como se não existisse. Minha mão parecia desprovida de comando, e eu não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. Eu sento lá num estado de espanto e admiração. E a música apenas flui sozinha”. Foi aí que, na década de 1990, o termo se encaixou como luva à arena esportiva, de onde podem surgir os resultados mais surpreendentes.
Alcançar este estágio, ao contrário do que possa parecer, não ocorre por acaso. É necessário trabalho duro durante um longo período de tempo. Mas a recompensa, segundo pesquisas do próprio Csikszentmihalyi, mostram que “quando mais os atletas experienciam o flow, mais felizes eles são”. E além disso, mais eficientes.
- No nível de alta performance, estimamos que 90% do sucesso de atletas é mental, mas ainda não sabemos como medir o pensamento. O que se pensa? Onde começa? Aonde vai? Podemos rastreá-lo? Qual é o seu impacto na biologia? Até que nós não tenhamos estas perguntas, a psicologia permanece uma ciência difusa. Mas isto está por vir - afirmou Michael Gervais, psicólogo especialista em tratamento de atletas de alta performance.
Gervais é um dos especialistas que, junto de Kotler, atletas e outros pesquisadores, almejam iniciar uma ampla pesquisa para desvendar o funcionamento do flow e torná-lo, inclusive, aplicável a seres humanos sem muitas emoções em seu dia a dia. Eles têm o ambicioso projeto de popularizar essa experiência.
- É literalmente um estado de desempenho máximo, quando sentimos o nosso melhor e fazemos o nosso melhor - afirmou Kotler em entrevista ao GLOBO. - Embora seja uma experiência rara, qualquer pessoa pode chegar ao flow. Então podemos decodificar este mistério para que as pessoas tenham acesso a essa performance ótima.
E, novamente, por que atletas? Segundo Kotler, a exigência de desempenho deles vem crescendo tanto nos últimos 25 anos que eles estariam hoje na classe mais propensa a chegar a este estágio, já que seu ambiente é repleto de desencadeadores de flow, num nível acima de qualquer outro.
Hormônios e neurotransmissores são responsáveis pelas reações do corpo em situações de perigo. Em geral, adrenalina e noradrenalina estimulam o coração, elevam a pressão arterial, relaxando certos músculos e contraindo outros. O corpo se torna potencializado para a ação, e o medo pode ser controlado pelo estado de alerta. Já a endorfina, que provoca a sensação de prazer, é comum na prática esportiva.
Kotler diz que a liberação destes neurotransmissores também ocorre no flow, mas num processo mais complexo. E que pode ser “altamente viciante”. Assim como a adrenalina. Isto poderia explicar, por exemplo, por que o piloto de Fórmula 1, Michael Schumacher, se aposentou da velocidade dos carros, mas continuou a desafiar pistas na neve. Ele acabou se acidentando no esqui há cerca de 20 dias.
Ondas gigantes e saltos super velozes
Ou a buscar ondas cada vez maiores, como conta o surfista Carlos Burle, conhecido por dominar as gigantes:
- Antigamente, a sensação ia da euforia para a plenitude e depois para melancolia, porque me batia a dúvida de quando iria acontecer de novo. Hoje fico mais tranquilo. Sei que não vou fazer isso pelo resto da vida.
Burle chamou a atenção do mundo no final do ano passado, quando, além de salvar com um jet ski a surfista Maya Gabeira das ondas Praia do Norte, em Nazaré, Portugal, bateu um recorde numa onda de mais de 30 metros.
- Geralmente, as emoções estão à flor da pele e os reflexos, mais apurados para passar pelo estresse e não ser dominado pelo medo. Mas aquele dia foi muito mais intenso. Nunca tinha passado por uma situação de tanto perigo num mar tão grande. Depois, peguei a onda e foi uma recompensa. Senti alegria, euforia, tristeza, tudo junto.
Independente do flow, o surfista acredita que a experiência esportiva colabora bastante para a sua rotina:
- Eu uso o surfe na relação com a vida pessoal. É mais fácil enfrentar desafios diários, manter a tranquilidade diante de problemas porque tenho esta relação intensa com o esporte.
O paraquedista Luigi Cani, o “homem pássaro” que chegou à velocidade de 552 quilômetros por hora num salto em 2005 na Califórnia, concorda que a vida fica mais simples quando se nota que é possível controlar as emoções.
- Como é uma situação de estresse altíssima em que não se pode descontrolar, acredito que outras atividades ficam menos difíceis - diz Cani. - Para o atleta de alta performance, existe tanta preparação, tanto questionamento, é uma montanha-russa; me pergunto várias vezes “por que vou fazer isso” e já cancelei vários saltos; então na hora que sai, é uma conquista que vai além do aspecto fisiológico. É uma sensação de realização, de controle, de ter poder sobre si próprio.
Steven Kotler diz que os tipos de situação de risco para se atingir o flow são relativas. E por isso mesmo precisam ser desvendadas. No caso de um atleta, seria o risco físico. Já para um jovem tímido, seria o simples fato de falar com um mulher atraente. Cani faz uma comparação semelhante:
- Para alguns, a sensação seria a mesma de quando alguém se prepara para uma entrevista do emprego dos sonhos e depois recebe a ligação da contratação. A felicidade é muito intensa. Este momento pode ser melhor do que o fato de ganhar bem.
Uma teoria um pouco mais sofisticada que vem ganhando peso sugere que estes atletas, quando absorvidos por uma atividade arriscada, liberam substâncias neuroquímicas que os fazem atingir um estado de consciência chamado fluxo (ou “flow”, como é mais conhecido). Geralmente é descrito como um estado de plenitude, onde é possível agir com um desempenho ótimo, sem nem pensar sobre isso; um sentimento de imersão seguido de êxtase. Os detalhes deste processo estarão no livro “The rise of superman” (“A ascensão do super-homem”, em tradução livre), do jornalista Steven Kotler, que será lançado nos Estados Unidos em março; e no Brasil, provavelmente, até o fim do ano.
Poucos são os atletas que conhecem o flow. Mas basta começar a explicar do que trata que as experiências surgem:
- Eu chamo isso de portal. Não é sempre, mas é como se algo diferente acontecesse em determinado ponto da corrida. É como se eu planasse numa onda, numa sensação de ausência, mas consciente. Não me sinto cansada, porque o corpo praticamente desaparece - conta a ultramaratonista Magda Andrade que, entre sexta-feira e sábado, percorreu os 217 quilômetros da ultramaratona “Brazil 135”, que corta montanhas da Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas Gerais.
Para se ter ideia, a corrida está entre os percursos mais difíceis do mundo e em pé de igualdade com as ultramaratonas Badwater, no Vale da Morte, na Califórnia, e da Arrowhead 135, em Minnesota, nos EUA. Na primeira, as temperaturas se aproximam dos 50 graus Celsius, enquanto que na segunda, dos 20, porém negativos.
O ‘flow’ surgiu na década de 70
O termo foi introduzido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, da Universidade de Chicago, ainda na década de 1970. Curiosamente, naquele período, ele foi aplicado a atividades que nada têm de arriscadas, e sim criativas: de artistas e cientistas; posteriormente, de executivos. Csikszentmihalyi costuma citar, inclusive, a entrevista de um compositor para defender sua tese: “Você está num estágio estático a tal ponto que você sente quase como se não existisse. Minha mão parecia desprovida de comando, e eu não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. Eu sento lá num estado de espanto e admiração. E a música apenas flui sozinha”. Foi aí que, na década de 1990, o termo se encaixou como luva à arena esportiva, de onde podem surgir os resultados mais surpreendentes.
Alcançar este estágio, ao contrário do que possa parecer, não ocorre por acaso. É necessário trabalho duro durante um longo período de tempo. Mas a recompensa, segundo pesquisas do próprio Csikszentmihalyi, mostram que “quando mais os atletas experienciam o flow, mais felizes eles são”. E além disso, mais eficientes.
- No nível de alta performance, estimamos que 90% do sucesso de atletas é mental, mas ainda não sabemos como medir o pensamento. O que se pensa? Onde começa? Aonde vai? Podemos rastreá-lo? Qual é o seu impacto na biologia? Até que nós não tenhamos estas perguntas, a psicologia permanece uma ciência difusa. Mas isto está por vir - afirmou Michael Gervais, psicólogo especialista em tratamento de atletas de alta performance.
Gervais é um dos especialistas que, junto de Kotler, atletas e outros pesquisadores, almejam iniciar uma ampla pesquisa para desvendar o funcionamento do flow e torná-lo, inclusive, aplicável a seres humanos sem muitas emoções em seu dia a dia. Eles têm o ambicioso projeto de popularizar essa experiência.
- É literalmente um estado de desempenho máximo, quando sentimos o nosso melhor e fazemos o nosso melhor - afirmou Kotler em entrevista ao GLOBO. - Embora seja uma experiência rara, qualquer pessoa pode chegar ao flow. Então podemos decodificar este mistério para que as pessoas tenham acesso a essa performance ótima.
E, novamente, por que atletas? Segundo Kotler, a exigência de desempenho deles vem crescendo tanto nos últimos 25 anos que eles estariam hoje na classe mais propensa a chegar a este estágio, já que seu ambiente é repleto de desencadeadores de flow, num nível acima de qualquer outro.
Hormônios e neurotransmissores são responsáveis pelas reações do corpo em situações de perigo. Em geral, adrenalina e noradrenalina estimulam o coração, elevam a pressão arterial, relaxando certos músculos e contraindo outros. O corpo se torna potencializado para a ação, e o medo pode ser controlado pelo estado de alerta. Já a endorfina, que provoca a sensação de prazer, é comum na prática esportiva.
Kotler diz que a liberação destes neurotransmissores também ocorre no flow, mas num processo mais complexo. E que pode ser “altamente viciante”. Assim como a adrenalina. Isto poderia explicar, por exemplo, por que o piloto de Fórmula 1, Michael Schumacher, se aposentou da velocidade dos carros, mas continuou a desafiar pistas na neve. Ele acabou se acidentando no esqui há cerca de 20 dias.
Ondas gigantes e saltos super velozes
Ou a buscar ondas cada vez maiores, como conta o surfista Carlos Burle, conhecido por dominar as gigantes:
- Antigamente, a sensação ia da euforia para a plenitude e depois para melancolia, porque me batia a dúvida de quando iria acontecer de novo. Hoje fico mais tranquilo. Sei que não vou fazer isso pelo resto da vida.
Burle chamou a atenção do mundo no final do ano passado, quando, além de salvar com um jet ski a surfista Maya Gabeira das ondas Praia do Norte, em Nazaré, Portugal, bateu um recorde numa onda de mais de 30 metros.
- Geralmente, as emoções estão à flor da pele e os reflexos, mais apurados para passar pelo estresse e não ser dominado pelo medo. Mas aquele dia foi muito mais intenso. Nunca tinha passado por uma situação de tanto perigo num mar tão grande. Depois, peguei a onda e foi uma recompensa. Senti alegria, euforia, tristeza, tudo junto.
Independente do flow, o surfista acredita que a experiência esportiva colabora bastante para a sua rotina:
- Eu uso o surfe na relação com a vida pessoal. É mais fácil enfrentar desafios diários, manter a tranquilidade diante de problemas porque tenho esta relação intensa com o esporte.
O paraquedista Luigi Cani, o “homem pássaro” que chegou à velocidade de 552 quilômetros por hora num salto em 2005 na Califórnia, concorda que a vida fica mais simples quando se nota que é possível controlar as emoções.
- Como é uma situação de estresse altíssima em que não se pode descontrolar, acredito que outras atividades ficam menos difíceis - diz Cani. - Para o atleta de alta performance, existe tanta preparação, tanto questionamento, é uma montanha-russa; me pergunto várias vezes “por que vou fazer isso” e já cancelei vários saltos; então na hora que sai, é uma conquista que vai além do aspecto fisiológico. É uma sensação de realização, de controle, de ter poder sobre si próprio.
Steven Kotler diz que os tipos de situação de risco para se atingir o flow são relativas. E por isso mesmo precisam ser desvendadas. No caso de um atleta, seria o risco físico. Já para um jovem tímido, seria o simples fato de falar com um mulher atraente. Cani faz uma comparação semelhante:
- Para alguns, a sensação seria a mesma de quando alguém se prepara para uma entrevista do emprego dos sonhos e depois recebe a ligação da contratação. A felicidade é muito intensa. Este momento pode ser melhor do que o fato de ganhar bem.
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