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Mauro Maldonato e Alberto Olivero.
ilustrações Oscar Vargas | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
A memória humana é uma faculdade maravilhosa e enganosa. Embora muitos a
considerem um arquivo imutável de experiências e recordações, o que ela
guarda não está esculpido em pedra. De fato, as lembranças tendem a
desbotar com o tempo, deformando-se e indo ao encontro, mesmo em
condições normais, de uma lenta decadência, de um esquecimento
fisiológico. E não é raro que gerem em nós perturbadoras sensações de
estranheza, fragmentação, não pertencimento e até mesmo recombinações
ilusórias de imagens e informações que ocupam nossa mente como um
caleidoscópio. A memória e o esquecimento, a imutabilidade e a
reestruturação das lembranças são aspectos tanto conflitantes quanto
complementares de nossa mente. Essa ambiguidade tem um valor evolutivo
crucial. Se, de um lado, a memória desempenha uma função adaptativa
fundamental para a espécie humana, de outro, sem a capacidade de
esquecer não aprenderíamos nada de novo, não corrigiríamos nossos erros,
não inovaríamos velhos esquemas. Assim, é plausível afirmar que,
enquanto a memória tende a preservar a história individual e coletiva, o
esquecimento tende a ofuscar, progressivamente, as recordações
infantis, os eventos do passado, os empreendimentos coletivos, as
antigas memórias. Não por acaso, os humanos erguem lápides e monumentos
para se defenderem do esquecimento.
Essa ambiguidade não se deve apenas à sua natureza vasta e heterogênea, mas também a suas relações intricadas. A própria natureza polissêmica do termo memória – utilizado por biólogos, psicólogos, antropólogos e historiadores para se referirem a processos e situações muito diferentes entre si, ainda que unidos pelo elemento comum da “flecha do tempo” – dificulta o aparecimento de um significado compartilhado e de fronteiras conceituais bem definidas. A etimologia grega do termo – mneme e anamnesis – espelha uma clara distinção entre a memória como esfera essencialmente intacta e contínua, e a reminiscência ou anamnese como exercício de presentificação das lembranças que o esquecimento vela. Em Menon, Fedro e outros diálogos, Platão afirma que todo conhecimento verdadeiro, todo aprendizado autêntico, é, na verdade, anamnese, esforço para chamar de volta à mente o que havia sido esquecido.
Hoje, uma época de predomínio cultural do paradigma medico- biológico, a memória (mneme) é identificada como um mecanismo cerebral puro, um arquivo das informações do sistema nervoso central; por seu lado, a reminiscência (anamnesis) é igualada a alguma coisa mais complexa e sutil do que o simples registro dos eventos. A reminiscência, de fato, implica uma reflexão sobre o passado, uma evocação das lembranças prazerosas ou dolorosas, sepultadas ou censuradas, que formam a essência de nossa individualidade. Mas, como é evidente, a disponibilidade do arquivo não coincide necessariamente com sua consulta e, portanto, a mera existência de uma lembrança, boa ou deficitária que seja, não se identifica com o princípio de identidade e de unicidade que decorre da individualidade de nossas recordações, conforme considera Oliverio. Nos últimos anos, os neurocientistas descreveram meticulosamente as bases moleculares, os fenômenos sinápticos e as alterações dos circuitos nervosos da memória, tentando preencher – por métodos não invasivos e multiparamétricos das imagens cerebrais – as lacunas explicativas da pesquisa psicológica. O conhecimento detalhado dessas dimensões poderia parecer pouco relevante aos que veem a mente como um conjunto de vivências diferentes e de experiências privadas e indizíveis. Em diferentes situações ligadas a danos e alterações da função nervosa, no entanto, a interpretação neurobiológica é fundamental para a compreensão do que acontece em nossa mente, como são reestruturadas as lembranças, como se dá o esquecimento.
Essa ambiguidade não se deve apenas à sua natureza vasta e heterogênea, mas também a suas relações intricadas. A própria natureza polissêmica do termo memória – utilizado por biólogos, psicólogos, antropólogos e historiadores para se referirem a processos e situações muito diferentes entre si, ainda que unidos pelo elemento comum da “flecha do tempo” – dificulta o aparecimento de um significado compartilhado e de fronteiras conceituais bem definidas. A etimologia grega do termo – mneme e anamnesis – espelha uma clara distinção entre a memória como esfera essencialmente intacta e contínua, e a reminiscência ou anamnese como exercício de presentificação das lembranças que o esquecimento vela. Em Menon, Fedro e outros diálogos, Platão afirma que todo conhecimento verdadeiro, todo aprendizado autêntico, é, na verdade, anamnese, esforço para chamar de volta à mente o que havia sido esquecido.
Hoje, uma época de predomínio cultural do paradigma medico- biológico, a memória (mneme) é identificada como um mecanismo cerebral puro, um arquivo das informações do sistema nervoso central; por seu lado, a reminiscência (anamnesis) é igualada a alguma coisa mais complexa e sutil do que o simples registro dos eventos. A reminiscência, de fato, implica uma reflexão sobre o passado, uma evocação das lembranças prazerosas ou dolorosas, sepultadas ou censuradas, que formam a essência de nossa individualidade. Mas, como é evidente, a disponibilidade do arquivo não coincide necessariamente com sua consulta e, portanto, a mera existência de uma lembrança, boa ou deficitária que seja, não se identifica com o princípio de identidade e de unicidade que decorre da individualidade de nossas recordações, conforme considera Oliverio. Nos últimos anos, os neurocientistas descreveram meticulosamente as bases moleculares, os fenômenos sinápticos e as alterações dos circuitos nervosos da memória, tentando preencher – por métodos não invasivos e multiparamétricos das imagens cerebrais – as lacunas explicativas da pesquisa psicológica. O conhecimento detalhado dessas dimensões poderia parecer pouco relevante aos que veem a mente como um conjunto de vivências diferentes e de experiências privadas e indizíveis. Em diferentes situações ligadas a danos e alterações da função nervosa, no entanto, a interpretação neurobiológica é fundamental para a compreensão do que acontece em nossa mente, como são reestruturadas as lembranças, como se dá o esquecimento.
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Os primeiros estudos experimentais sobre a memória remontam à segunda metade do século 19, quando o alemão Hermann Ebbinghaus divulgou entre a comunidade científica um texto – Über das Gedachtnis (1885) – relatando experimentos sobre a memória e o esquecimento que realizara sobre si mesmo. Nessa obra, um verdadeiro marco da psicologia, ele mostrou a existência de uma curva do aprendizado e de uma curva do esquecimento. Ebbinghaus recorreu a um método – definido como da “poupança”– que consistia em decorar diversas séries de listas que continham silabas destituídas de sentido (ARB, DRE, MIR, NOT e assim por diante); o procedimento era repetido, mais de 100 vezes, com uma lista diferente depois de 20 minutos, 1 hora, 9 horas, 1 dia e mais dias. O experi mento demonstrou que se entre a primeira e a nona hora havia uma queda rápida do que fora aprendido, à medida que o tempo passava após o fim da prova o processo de esquecimento se tornava mais lento: isto é, exatamente no polo oposto daquilo que se dava com o processo de aprendizado.
Para um enquadramento psicobiológico da memória foi necessário esperar até meados do século passado, quando o neurofisiologista canadense Donald O. Hebb formulou a hipótese do “duplo rastro”. Segundo essa hipótese, uma experiência altera um circuito nervoso responsável por uma codificação a curto prazo (de poucos segundos ou minutos de duração), modificando a atividade elétrica de alguns neurônios capazes de codificar a informação de maneira precária, instável. A esse tipo de codificação segue-se outra, estável, a memória de longo prazo (de meses ou anos de duração), ligada a modificações estruturais duradouras dos neurônios ou dos circuitos nervosos (consolidação da memória). Segundo Hebb, os dois tipos de memória correspondem a modificações funcionais das sinapses nervosas (memória de curto prazo) e a modificações estruturais ou permanentes das sinapses nervosas e dos neurônios (memória de longo prazo). A hipótese postulada por Hebb há aproximadamente meio século sobre a plasticidade funcional ou estrutural neural e sináptica – que implica uma reestruturação de escala das redes nervosas – recebeu inúmeras confirmações experimentais.
Uma das mais importantes referências ao modelo hebbiano está relacionada a pesquisas sobre as bases neurobiológicas da memória, em boa parte fundamentadas na análise das alterações da atividade elétrica neural e sináptica: particularmente da denominada potencialização de longo prazo (Long-term potentiation, LTP) da atividade elétrica das sinapses nervosas. Durante a LTP, em decorrência de um estímulo especialmente intenso ou repetido ao longo do tempo, uma sinapse potencializa seu nível de resposta, incrementando sua eficiência em até duas vezes e meia. Esse incremento da atividade elétrica sináptica se desenvolve em poucos minutos após o estímulo inicial e permanece relativamente estável por um bom tempo; em determinadas condições, por várias semanas. Na essência, quando um estímulo signifitivo é recebido por um neurônio, como no caso dos estímulos que se seguem repetidamente durante o condicionamento, pode- se verificar um aumento da eficiência das suas sinapses. Com o tempo, aliás, podem se formar outras sinapses que contribuem para conectar os neurônios em um novo circuito – o chamado circuito local – que codifica uma experiência ou memória específica. Portanto, de uma alteração funcional inicial (a atividade elétrica vinculada a modificações dos íons, entre eles o cálcio) os neurônios vão em direção
a modificações estruturais provocadas pelas alterações de algumas enzimas e pela síntese de proteínas que alteram o esqueleto dos neurônios, estimulando a formação de sinapses que se soldam entre si. As variações do circuito nervoso permitem registrar a informação no interior de redes neurais.
A reestruturação das redes nervosas que se segue à experiência é o fundamento de uma teoria da mente – ou do cérebro – conhecida com o nome de “conexionismo”. Segundo esse modelo a mente dependeria da existência de redes que se auto-organizam, pois cada unidade da rede (os neurônios) se caracteriza por um nível numérico de atividade que muda, no tempo, em função da atividade das unidades às quais está conectada e pela força das conexões ou nós. Na origem do aprendizado haveria essas mudanças. Para os conexionistas o cérebro se adaptaria ao ambiente por meio da rede (ou circuito local), espelhando suas características salientes graças a variações sinápticas.
Do ponto de vista empírico o neurocientista americano Erik Kandel demonstrou que nos invertebrados (como nos vertebrados superiores) o registro de uma experiência está correlacionado aos mecanismos do LTP e da formação de sinapses. Essas evidências foram obtidas pelos experimentos de Kandel, em 2007, com lesmas-do-mar, Aplysia californica, que reagem a um estímulo tátil (um fino jato de água) retraindo a brânquia com uma conduta de autoproteção explícita: conduta que se extingue se os jatos de água continuam no mesmo ritmo. O acostumar-se da Aplysia dura o tempo em que se deu a mudança no âmbito dos circuitos nervosos. De fato, as sinapses entre o neurônio sensitivo (que reage ao estímulo tátil) e o motor (que ativa os músculos da brânquia) se tornam mais estáveis e se comunicam mais facilmente através dos mensageiros nervosos para a consolidação da experiência. Esses experimentos, que deflagraram diferentes pesquisas com outras espécies animais, incluindo-se os mamíferos, indicam que a consolidação de uma experiência se baseia em mecanismos similares e que nos mamíferos as experiências são consolidadas graças a modificações bioelétricas que envolvem o hipocampo, estrutura do sistema límbico que vai em direção de LTPs em diferentes fases da memorização e que está funcionalmente ligado ao córtex temporal.
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Até aqui consideramos a memória sem examinar a influência das emoções em suas esferas psicológicas. Os processos emotivos influenciam e modulam profundamente a biologia da memória. Na verdade, elas provocam inúmeras modificações vegetativas somáticas, cuja tarefa não é apenas informar o cérebro de que o corpo está emocionado – conferindo precisos matizes a determinadas experiências – mas também consolidar as experiências. Pensemos, em relação a isso, no papel exercido pelas endorfinas (peptídeos de ação analgésica similar à morfina que o cérebro libera em resposta a estímulos de dor ou emotivos) ao alterar a função dos mediadores nervosos que modificam a atividade das sinapses nas redes dos neurônios que registram as experiências.
As emoções intervêm tanto diretamente nos mecanismos da memória, agindo na bioquímica cerebral, quanto indiretamente, por mensagens que o corpo emocionado envia ao cérebro. Trata-se de evidência já consolidada de que nos animais submetidos a experiências ricas de componentes emocionais a memorização é potencializada, já que os nervos (as fibras do nervo vago) indicam ao cérebro a liberação, em âmbito periférico, de substâncias típicas dos estados emocionais, como a adrenalina, secretada pelas glândulas suprarrenais. Nesse sentido, a biologia da memória não diz respeito apenas àqueles fenômenos neurobiológicos que asseguram a codificação de curto ou longo prazo das experiências, mas também à modulação exercida pelas estruturas nervosas e moléculas vinculadas à emoção.
As relações entre emoção e fatores cognitivos mostram o quanto são complexos os sistemas neurobiológicos responsáveis pelas diferentes dimensões da memória. Há quase meio século, o neurocirurgião americano William Scoville e a neurocientista inglesa Brenda Milner descreveram o caso clínico de um paciente, que mais tarde ficou famoso com suas iniciais, HM, que desde o nascimento padecia de uma grave forma de epilepsia que tornava sua vida bastante penosa. O procedimento neurocirúrgico para remover o tecido nervoso que causava as convulsões teve sucesso. A capacidade de percepção de eventos, raciocínio, fala e de recordar os eventos mais recentes foi conservada, assim como a memória semântica, apenas parcialmente alterada. Na íntegra, ao contrário, estava a capacidade de revocar tanto os eventos anteriores à cirurgia, quanto os seguintes a esse procedimento. Tratava-se de uma amnésia episódica tanto retrógrada (o passado) quanto anterógrada (experiências seguintes).
A situação de HM, no entanto, era estranha. As lacunas de sua memória não diziam respeito a sua vida inteira, mas apenas aos anos mais recentes, aproximadamente uma dezena deles. Os déficits da memória infantil e do início da adolescência eram muito menos relevantes. A singularidade do caso HM induziu neuropsicólogos a refletir: se a sede da memória fosse a região temporal média, sua ablação cirúrgica teria inibido a formação de novas lembranças, mas também apagaria todas as lembranças do passado. HM, no entanto, guardava as lembranças mais antigas, as consolidadas, distribuídas nos circuitos corticais: isto é, aquelas que – após horas, meses ou até mesmo anos – a região temporal média (hipocampo, amígdala e córtex temporal) codifica em experiências, decompõe em categorias, conota com base em seu significado e, enfim, distribui nas várias regiões do córtex cerebral.
Em decorrência dos estudos sobre HM e sobre as relações entre hipocampo, lóbulo temporal e memória, as pesquisas passaram a examinar as estruturas nervosas que, se prejudicadas, provocam amnésia. Esses estudos demonstraram que a região temporal está vinculada ao sistema límbico (amígdala e hipocampo) e essa região com o diencéfalo (tálamo) através do fórnix: região temporal, sistema límbico e tálamo formam uma espécie de circuito da memória de que, obviamente, faz parte todo o córtex cerebral, em conexão com o temporal. Todas essas estruturas nervosas estão envolvidas na chamada memória explícita, que implica um reconhecimento consciente das experiências de vida. De fato, sensações e experiências, para serem transformadas em memórias explícitas, devem atravessar uma espécie de funil, a região temporal, e, daí, passando pelo hipocampo e pela amígdala (em que são conotadas por características espaciais e emotivas entre outras) alcançar o diencéfalo (tálamo) onde as experiências são reunidas e registradas sob forma de memórias estáveis nos circuitos cerebrais. Esse circuito córtex temporal-hipocampo-diencéfalo permite conectar as diferentes experiências da vida diária (sensações, imagens mentais, emoções, avaliações e juízos de realidade) para transformá-las em memória episódica, em eventos de nossa história individual. Trata-se de estruturas que desempenham papel também na memória semântica, como quando aprendemos nomes novos, registramos estavelmente números de telefones e aprendemos novos vocábulos. Por isso, conforme a amplitude da lesão nervosa, os pacientes amnésicos têm dificuldade não apenas para formar novas lembranças ou para acessar recordações existentes, mas também para apreender novas experiências.
Nos últimos anos o estudo da função dos núcleos subcorticais – entre os quais o conjunto do estriado-caudato-putâmen e núcleo accumbens – solicitou um modelo de memória mais complexo, que integra seus diferentes componentes cognitivos, emocionais, motivacionais. É coisa notória, aliás, que lembramos os eventos emotivamente significativos, e que a motivação e o reforço têm um papel central no aprendizado. Interface entre funções cognitivas, motoras e motivacionais é o estriado ventral. Ele está no centro tanto dos comportamentos “motivados” voltados a uma finalidade, como do tratamento de informações que dizem respeito ao contexto, fundamentados em associações complexas entre estímulos diferentes.
No âmbito dessa rede funcional o hipocampo desempenharia a função de monitoramento do ambiente exterior, correlacionando entre si velhas e novas informações, como as velhas e as novas memórias espaciais; a amígdala estaria envolvida na regulação das respostas emotivas e, portanto, na aproximação de novos estímulos; enfim, o córtex pré-frontal estaria envolvido no planejamento das respostas. Essa hipótese é corroborada por inúmeros resultados experimentais que mostram que o bloqueio das vias que alcançam o estriado ventral a partir do córtex pré-frontal ou do hipocampo inibe a formação e a elaboração de associações entre informações não reforçadas (associações estímulo-estímulo), essencial nos processos cognitivos complexos; enquanto lesões do núcleo basal lateral da amígdala, ou das vias que partem daí para o estriado induzem a um déficit da resposta normal aos novos estímulos e das respostas emotivas.
Fidelidade e infidelidade da memória
Como foi observado, a memória vai ao encontro do esquecimento, evolui no tempo, se reestrutura e é influenciada por outras experiências e lembranças. Essa mutabilidade foi confirmada essencialmente por duas linhas de pesquisa: uma experimental, a outra, clínica. A primeira valeu-se das pesquisas de Larry R. Squire (1987) sobre os efeitos negativos do eletrochoque (tratamento ainda utilizado pelos psiquiatras nos casos de depressão grave e resistente aos psicofármacos) na memória humana e animal. O neurocientista americano observou que o eletrochoque aplicado logo após uma experiência – antes que a memória de curto prazo se consolide na de longo prazo – provoca uma amnésia retrógrada: ou seja, apaga a lembrança daquela experiência devido à interferência do eletrochoque nos mecanismos de consolidação da memória. Ainda assim, o eletrochoque influi não apenas no processo de consolidação da memória: age também nas memórias consolidadas, divergindo da opinião dos que por muito tempo afirmaram que, uma vez consolidada, a memória já não estaria exposta a qualquer condicionamento. A eliminação por eletrochoque de parte das lembranças consolidadas, mesmo após meses – tanto para a esfera das lembranças associativas quanto para a das lembranças cognitivas –, indica que a memória é passível de remanejamentos e reelaborações.
Na verdade, mais que de consolidação da memória fala-se hoje de reconsolidação: um processo contínuo de reorganização da memória, nada objetivo. A reconsolidação é considerada um meio para integrar as coisas novas aprendidas nas experiências anteriores, sujeitas a reestruturações tanto nas formas mais simples do condicionamento animal quanto nas mais complexas memórias autobiográficas. Da mutabilidade das lembranças ao longo do tempo também são testemunhas as análises de pesquisas de tipo longitudinal, fundamentadas em autobiografias, coletadas à distância de 2, 5 e 10 anos pela psicóloga Margareth Linton. A partir de 1972 a psicóloga americana começou a anotar de forma concisa, utilizando sempre o mesmo “módulo” de diário (aproximadamente 3 linhas), diversos eventos cotidianos. Dia após dia ia anotando os acontecimentos, uniformizando a extensão dos registros por meio das habituais três linhas, para evitar que desse um espaço diferente às diversas lembranças, facilitando assim gravar alguns em lugar de outros. Margareth transcrevia pelo menos dois eventos por dia, e, uma vez por mês, puxava ao acaso as fichas relativas a dois fatos, tornava a lê-las, procurava estabelecer suas datas e revocá-los. Na hora da transcrição e da releitura, os acontecimentos eram avaliados também nos termos de sua relevância, das emoções envolvidas, dos significados e assim por diante. Por meio desse procedimento meticuloso, tendo a si mesma como sujeito e objeto do experimento, Margareth chegou a estabelecer que as lembranças vão ao encontro do esquecimento no ritmo de aproximadamente 5% a 6% ao ano. Esse ritmo implicaria o desaparecimento de cerca da metade das lembranças de eventos específicos se esses casos não fossem incluídos no âmbito do mais vasto sistema da memória autobiográfica relativa aos fatos de caráter geral ou aos períodos de nossa vida: de fato, cada um dos tijolos com que são construídos esses recipientes mais amplos pode desagregar, enquanto, ao contrário, a percepção do fluxo das lembranças e de seu significado global permanece.
Em resumo, a persistência de lembranças ou experiências que cada qual considera serem marcos da própria vida não é nada estável. O mesmo evento é narrado de maneira diferente, os detalhes e até mesmo seu significado mudam, como se a memória, em lugar de corresponder a uma fotografia precisa da realidade, fosse um pedaço de massa de modelagem, que vai gradualmente mudando de forma.
Como foi observado, a memória vai ao encontro do esquecimento, evolui no tempo, se reestrutura e é influenciada por outras experiências e lembranças. Essa mutabilidade foi confirmada essencialmente por duas linhas de pesquisa: uma experimental, a outra, clínica. A primeira valeu-se das pesquisas de Larry R. Squire (1987) sobre os efeitos negativos do eletrochoque (tratamento ainda utilizado pelos psiquiatras nos casos de depressão grave e resistente aos psicofármacos) na memória humana e animal. O neurocientista americano observou que o eletrochoque aplicado logo após uma experiência – antes que a memória de curto prazo se consolide na de longo prazo – provoca uma amnésia retrógrada: ou seja, apaga a lembrança daquela experiência devido à interferência do eletrochoque nos mecanismos de consolidação da memória. Ainda assim, o eletrochoque influi não apenas no processo de consolidação da memória: age também nas memórias consolidadas, divergindo da opinião dos que por muito tempo afirmaram que, uma vez consolidada, a memória já não estaria exposta a qualquer condicionamento. A eliminação por eletrochoque de parte das lembranças consolidadas, mesmo após meses – tanto para a esfera das lembranças associativas quanto para a das lembranças cognitivas –, indica que a memória é passível de remanejamentos e reelaborações.
Na verdade, mais que de consolidação da memória fala-se hoje de reconsolidação: um processo contínuo de reorganização da memória, nada objetivo. A reconsolidação é considerada um meio para integrar as coisas novas aprendidas nas experiências anteriores, sujeitas a reestruturações tanto nas formas mais simples do condicionamento animal quanto nas mais complexas memórias autobiográficas. Da mutabilidade das lembranças ao longo do tempo também são testemunhas as análises de pesquisas de tipo longitudinal, fundamentadas em autobiografias, coletadas à distância de 2, 5 e 10 anos pela psicóloga Margareth Linton. A partir de 1972 a psicóloga americana começou a anotar de forma concisa, utilizando sempre o mesmo “módulo” de diário (aproximadamente 3 linhas), diversos eventos cotidianos. Dia após dia ia anotando os acontecimentos, uniformizando a extensão dos registros por meio das habituais três linhas, para evitar que desse um espaço diferente às diversas lembranças, facilitando assim gravar alguns em lugar de outros. Margareth transcrevia pelo menos dois eventos por dia, e, uma vez por mês, puxava ao acaso as fichas relativas a dois fatos, tornava a lê-las, procurava estabelecer suas datas e revocá-los. Na hora da transcrição e da releitura, os acontecimentos eram avaliados também nos termos de sua relevância, das emoções envolvidas, dos significados e assim por diante. Por meio desse procedimento meticuloso, tendo a si mesma como sujeito e objeto do experimento, Margareth chegou a estabelecer que as lembranças vão ao encontro do esquecimento no ritmo de aproximadamente 5% a 6% ao ano. Esse ritmo implicaria o desaparecimento de cerca da metade das lembranças de eventos específicos se esses casos não fossem incluídos no âmbito do mais vasto sistema da memória autobiográfica relativa aos fatos de caráter geral ou aos períodos de nossa vida: de fato, cada um dos tijolos com que são construídos esses recipientes mais amplos pode desagregar, enquanto, ao contrário, a percepção do fluxo das lembranças e de seu significado global permanece.
Em resumo, a persistência de lembranças ou experiências que cada qual considera serem marcos da própria vida não é nada estável. O mesmo evento é narrado de maneira diferente, os detalhes e até mesmo seu significado mudam, como se a memória, em lugar de corresponder a uma fotografia precisa da realidade, fosse um pedaço de massa de modelagem, que vai gradualmente mudando de forma.
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