3.28.2012

Patologia ou escolha

Assexuados são minoria incompreendida do momento,  são os novos gays

Para o jornalista Millôr Fernandes, entre todas as taras sexuais não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência. A pedagoga Elisabete Oliveira, que escreve sua tese de doutorado sobre assexualidade, não poderia estar mais de acordo: "As pessoas têm mais facilidade para entender as variações do desejo do que a falta dele".
A área de estudo de Oliveira é particularmente nova: há poucos trabalhos científicos sobre o tema no mundo, e a maioira deles apresenta a assexualidade como transtorno, segundo ela. "Até hoje foram escritos menos de 30 artigos que enxergam o desinteresse pelo sexo como opção".
Os próprios assexuais contribuíram para transferir seu comportamento do campo da patologia para o das escolhas. A partir dos anos 2000, eles passaram a se organizar em comunidades virtuais e a tentar se definir. Aos trancos e barrancos, chegaram à definição atual do que vem a ser um assexual: "É uma pessoa que sente pouco ou nenhum desejo por outras pessoas", explica a estudante colombiana Johanna Villamil, 26, representante da Aven (Asexual Visibility and Education Network) na América Latina.
Dentro da definição há espaço para quem sente repulsa ao sexo, namora sem transar, pratica masturbação e até transa sem interesse, no intuito de agradar o parceiro.
Com 40 mil membros, 2 mil na América Latina, a Aven é a maior organização do gênero e acha que poderia ser maior: "Pouca gente se identifica como assexual, o termo é desconhecido e parece pejorativo. Nossa intenção é sair do armário para que outros se reconciliem com a opção de não transar", diz Villamil.
No DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), catálogo de doenças mentais da associação americana de psiquiatria, assexualidade tem nome e sobrenome: é síndrome do desejo sexual hipoativo, considerada um desvio.
"Para o DSM ninguém é normal", relativiza Carmita Abdo, coordenadora do projeto de sexualidade do Hospital das Clínicas. A psiquiatra lembra que há mais diversidade entre quatro paredes do que fazem supor as revistas femininas: "Por vivermos numa sociedade hipersexualizada, não transar parece problema grave, mas ninguém deve ser medicado por não ter desejo, a não ser que isso gere sofrimento".
Deficiência hormonal, depressão, vaginismo, problemas de tireoide ou de ereção, menopausa, hipertensão e diabetes são alguns fatores que podem minar a vontade de sexo. É comum, no entanto, que pessoas saudáveis percam o desejo por um tempo: "Sexualidade não é uma linha eternamente ascendente. Para se considerar assexuada a pessoa precisa estar numa fase longa de falta de desejo sem motivo de saúde, acima de seis meses", diz Abdo.
A fase prolongada de F. Michele, 30, tem durado sua vida inteira. A funcionária pública baiana já tentou relacionamentos com homens e mulheres só para ter certeza de sua indiferença ao sexo: "Não me faz falta. Mantive relacionamentos quando me senti exigida, mas hoje sei que é contra minha natureza", diz.
Até os 28, Michele conta que levantava suspeitas ao pular Carnaval e frequentar shows e nunca ficar com alguém: "Beijei alguns homens, tive relacionamentos rápidos, sem sexo, mas ainda assim era estranho nunca me verem com alguém".
Quando se submeteu a uma cirurgia de redução de estômago, há cinco anos, a pressão para que namorasse cresceu: "Se você não sai com ninguém porque é gorda, tudo bem, mas ser magra e só é inaceitável", diz.
Para atender à demanda da família, a moça namorou um rapaz por seis meses. Não deu certo. Tentou um caso homossexual, fracassou: "Não gosto da sensação de ser tocada e o suor durante o sexo me incomodava muito, sentia nojo".
Hoje, Michele se diz apaziguada com sua opção: "Duas das minhas irmãs sabem que sou assexuada, falei. Para os outros, não preciso me expor tanto, mas não chego a esconder. Se alguém vem com conversa sobre namoro, deixo claro: não me interessa".
Para a psicóloga Blenda de Oliveira, todo mundo tem libido e é preciso investigar as causas antes de aceitar a assexualidade como saudável: "Há quem tenha baixa libido ou prefira canalizar essa energia para outras coisas. Mas é raro alguém que não tenha problemas com sua falta de desejo".
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O novo movimento dos sem desejo é fruto das conquistas de outras minorias, diz Elizabeth Abbott, especialista em celibato da Universidade de Toronto, no Canadá.
"Esse é o tema do momento. Os assexuados são os novos gays. A exemplo dos homossexuais na década de 1970, eles são vistos como doentes e sofrem punições sociais por suas escolhas", diz.

Divulgação/AVEN
Turma da Rede de Educação e Visibilidade Assexual (Aven, na sigla em inglês) na última parada gay de São Francisco
Turma da Rede de Educação e Visibilidade Assexual (Aven, na sigla em inglês) na última parada gay de São Francisco
Se os celibatários se reprimem em nome de uma causa, assexuados não têm impulso sexual: "Celibato é uma atitude 'santa' de controle dos instintos. Já assexualidade é vista como ausência de instintos, como se a pessoa não fosse um ser humano pleno", compara a historiadora.
Grupos de apoio a assexuados podem soar tão sem sentido quanto grupos dos que não curtem chocolate: não há violência contra assexuados nem barreiras para que façam o que querem -uma vez que eles não querem fazer nada.
Mas a categoria vê motivos para se unir: "Vivemos em uma sociedade que enaltece ideias românticas e vende sexo o tempo inteiro. A gente quer ser respeitado e não ser constrangido por não ter as mesmas motivações dos outros", diz o estudante Ricardo Oliveira, 21, do Paraná.
Alguns buscam as redes para lidar bem com o assédio de família e amigos, que tentam empurrar pretendentes.
Já os românticos procuram parceiros que aceitem uma relação sem sexo. Como o engenheiro gaúcho Ricardo, 25. Ele conta que, quando deu o primeiro beijo, aos 14, não sentiu nada:
"Estava apaixonado, tinha expectativas altas, mas nada aconteceu".
Hoje, assexual assumido para alguns amigos e familiares, Ricardo tem problemas para arrumar companhia. "Como acha que sua namorada ficaria se você falasse para ela: 'Gosto muito de ti, mas não sinto vontade alguma de sexo', estranho, não?".
Os militantes acham que assumir sua assexualidade fará outros se sentirem melhor com a falta de libido.
No Brasil, o site assexualidade.com.br, com um fórum anônimo e sala de bate-papo, atrai 70 visitas diárias. É mantido pelo estudante Júlio Neto, 21. "Assexualidade é algo ainda estranho para o brasileiro, por conta da nossa cultura, muito sensual", diz.
Dono de uma loja de informática em Pernambuco, ele diz não ter medo do julgamento social: "Sou o que sou, mas entendo quem não se expõe, é difícil ser apontado como esquisito".
Julio eventualmente beija garotas: "Não posso chamar o que faço de 'ficar'. É mais complicado, e a menina nunca entende como 'ficar'".

JULIANA CUNHA
  FOLHA

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