3.28.2012

Quantos quilos vale sua vida?


Daliana Camargo queria ser magra. Fez uma cirurgia de estômago não regulamentada e hoje vive como inválida. Não pode nem tomar água. O que seu drama ensina sobre obesidade e ética médica

Quem não gosta de comparar o “antes” e o “depois” de obesos que fazem cirurgia para emagrecer? Fotos desse tipo são irresistíveis. Adoramos acompanhar as mudanças físicas e os ganhos de autoestima que impulsionam a descoberta de uma vida nova. Em geral, a transformação é para melhor. Casos de insucesso – ou de catástrofe – existem, mas não costumam chegar ao conhecimento do público. São contados no campo das exceções, dos percalços inerentes ao desenvolvimento científico. Esta reportagem começa com um “antes” e “depois” ao contrário. O que as fotos desta página revelam é a triste história da moça gordinha (1,58 metro e 76 quilos) e saudável que decidiu se submeter a procedimentos cirúrgicos para emagrecer. A advogada Daliana Kristel Gonçalves Camargo queria alcançar o padrão de beleza que sucessivas dietas e internações em spas não lhe permitiram atingir.
Hoje, aos 31 anos, Daliana não come. Literalmente. Durante todo o ano de 2009, não pôde colocar na boca nenhuma comida. Nem um gole de água. O que a mantém viva é uma preparação proteica que ela recebe por meio de uma sonda colocada no nariz. O tubo de plástico desce pela garganta, pelo esôfago e leva o líquido especial diretamente até o intestino, onde os nutrientes são absorvidos. O estômago dela tem uma fístula, uma espécie de vazamento, que, apesar de todas as tentativas de fechá-la, de tempos em tempos volta a abrir. É por isso que Daliana não pode comer. O que entrar em seu estômago pode sair pela fístula, cair na cavidade abdominal e provocar uma grave infecção. Há duas semanas, uma tela foi colocada no órgão na tentativa de tampar o orifício. Se não funcionar, o estômago terá de ser extraído.

Albúm de família
ANTES E DEPOIS
Daliana antes da cirurgia, com 76 quilos,
 e hoje, na foto ao lado, presa à cama
por uma sonda aos 31 anos com um
 buraco no estômago

Anderson Schneider




















Na semana passada, Daliana me recebeu no quarto de sua casa, em Goiânia (leia a entrevista). Na quarta-feira, o Conselho Nacional de Saúde considerou ilegal a técnica cirúrgica a que ela foi submetida, conforme revelou epoca.com.br na manhã da sexta-feira. Daliana passa o dia deitada na cama, presa à sonda de alimentação e ao dreno que leva para fora do corpo um líquido amarelo. É uma mistura de saliva e pus. Com 56 quilos, Daliana não passa fome. Mas sente muita vontade de comer. “Poder beber água já seria muito bom”, disse. “Uma papinha, então, seria o céu.” A vontade de comer atormenta. Em momentos de crise, ela arranca tufos de cabelo e esfrega um joelho no outro até sangrar. Sente-se melhor quando toma o antidepressivo Daforin. A família se esforça para que Daliana não seja confrontada com imagens de comida. Instaurou-se na casa um regime de censura prévia. Páginas de revista com anúncios de comida são arrancadas. DVDs que mostrem atores comendo qualquer coisa – até uma simples maçã – são banidos. A nova ameaça está no quintal: é a mangueira carregada de frutos tentadores.
Daliana foi operada pelo médico Aureo Ludovico de Paula, que realiza cirurgias em Goiânia e no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O cirurgião construiu uma carreira bem-sucedida. É bastante influente no Centro-Oeste e já operou muitos famosos. Entre eles o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e o apresentador de TV Fausto Silva. Faustão decidiu procurar o médico quando soube que ele tinha inventado uma técnica cirúrgica para combater o diabetes. Nos últimos anos, ela foi amplamente divulgada no Brasil. Em 2007, uma revista semanal dedicou uma reportagem de capa ao método de Aureo. Estampou uma maçã do amor na capa e a chamada “Cura do diabetes: a esperança está numa cirurgia”.

DIÁRIO DA MANHà
 A paciente não foi objeto de nenhuma pesquisa “
AUREO LUDOVICO DE PAULA, médico que operou Daliana,
em sua defesa  no processo que corre no Tribunal de Justiça de Goiás


Centenas de pacientes diabéticos (magros ou gordos) foram submetidos à técnica. Ela é chamada de interposição do íleo. A parte final do intestino delgado (íleo) é deslocada para a porção do intestino mais próxima do estômago. A lógica por trás dessa ideia é a seguinte: como o alimento chega mais rapidamente ao íleo, aumenta a produção de hormônios do intestino que facilitariam a secreção de insulina pelo pâncreas. Além disso, é feita também uma redução de cerca de 40% do estômago. O paciente perde peso, o que diminui a resistência do organismo à insulina. Em congressos e em artigos que publica em revistas médicas, Aureo afirma que quase 90% dos doentes ficam totalmente livres do diabetes. É possível, mas a técnica que ele adota não foi aprovada para uso em humanos em nenhum lugar do mundo. Portanto, a segurança e a eficácia da cirurgia – e seus efeitos a longo prazo – são desconhecidas.

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