A farsa boliviana
Gravação comprova que tio e advogado de Kevin Beltrán Espada, morto por um sinalizador no jogo Corinthians e San José há três meses, quer dinheiro para inocentar, em depoimento, os 12 torcedores brasileiros presos na Bolívia
Rodrigo CardosoOuça a gravação:
Na praça, a conversa entre os advogados se desenrolou por cerca de uma hora. Nela, o tio de Kevin insiste para que ele e o colega brasileiro trabalhem juntos para libertar os torcedores do Corinthians. Dias depois, em mais uma hora de diálogo, agora em um restaurante, Beltrán abre o jogo de vez e pede dinheiro para contribuir com a soltura dos brasileiros. “Doutor, te digo com muita sinceridade. Se estamos buscando libertar os 12 torcedores, o caminho não é esse que estamos seguindo. Não é pela pressão política, não é um tema diplomático”, afirma. “Se não trabalharmos juntos, não iremos solucionar nem o problema da família de Kevin nem libertar os 12. Praticamente, o que propomos a vocês é acabar de vez com esse processo. Os familiares (do adolescente morto) buscam uma reparação material, civil, e isso poderia ser assumido pelo Corinthians.” Ou seja, ele deixa claro que o caminho a ser trilhado para a libertação dos torcedores não é o da Justiça, mas o do dinheiro.
A contrapartida do testemunho custaria US$ 220 mil – cerca de R$ 400 mil – a serem entregues à família de Kevin (conforme consta da anotação manuscrita por Beltrán acima) e que deveriam ser levantados pelo advogado Marques em 20 dias, assim que ele retornasse ao Brasil. “Esse é o momento adequado (para solucionar o caso), doutor. Mais para a frente, fica complicado... uma vez que se produz a acusação, aí não poderemos introduzir nenhuma prova que não as que o investigador já tenha determinado”, insiste o advogado Beltrán, como revelam as gravações (leia mais à pág. 74). A confissão sobre a real posição de Kevin na arquibancada poderia mudar o rumo da investigação e culminar com a libertação dos brasileiros, de acordo com o perito Ricardo Molina, da Universidade de Campinas. “Considerando-se que os torcedores corintianos estavam à direita de Kevin, se for verdade que o adolescente boliviano estava de costas para o campo, seria impossível que o sinalizador que entrou pelo olho direito e saiu pela jugular esquerda dele partisse da posição onde se encontrava a torcida brasileira”, diz ele.
REUNIÃO
À esq., o presidente do Corinthians, Mário Gobbi, com familiares dos presos.
Eles não têm ajuda financeira do clube para resolver a questão jurídica.
Abaixo, o advogado Sérgio Marques (em destaque) e o procurador
boliviano Alfredo Canavari (no centro) durante oitiva do menor H. A. M.
O depoimento contundente de um parente de Kevin em troca de dinheiro para a família do adolescente morto, juridicamente falando, pode até não significar a soltura imediata dos torcedores. Mas a revelação de que familiares da vítima tentam negociar a morte de Kevin, além de chocante, demonstra desinteresse em que se ache o verdadeiro culpado. “Um sujeito que propõe um acordo e negocia a imagem do parente morto antes de os fatos serem esclarecidos mostra que ele pode ter se omitido em relação à verdade anteriormente”, diz o advogado dos detentos brasileiros. Na gravação, o tio de Kevin diz não ser preciso tornar público o acordo financeiro. “Não necessito que o Corinthians diga que está compensando a família civilmente... tem de fazer um documento de solidariedade, comovido (com a situação financeira dos pais de Kevin), assumindo sua responsabilidade social e (os) repararia”, sugere Beltrán. Procurado por ISTOÉ e questionado se em alguma oportunidade chegou a pedir dinheiro em nome da família de Kevin a algum emissário dos torcedores presos, o tio do adolescente boliviano respondeu: “Formalmente, não.”
Membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/SP, o advogado Sérgio de Moura Ribeiro Marques, ex-professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), aceitou trabalhar para os familiares dos presos gratuitamente por viver um drama semelhante. Pai solteiro de Tales Porchat de Moura Ribeiro, 11 anos, ele possui a guarda do filho, mas há cerca de três anos concordou com a vontade do garoto de viver um breve período com a mãe, no interior de São Paulo. Desde então, Marques diz sofrer alienação parental e não consegue ter contato com Tales. No dia em que pediu ao pai para ir morar com a mãe, o menino revelou que havia decidido ser corintiano. Marques disse às famílias que sabe quanto é dolorido ter um filho longe e pediu um pagamento inusitado. Ao final do processo, quer que cada torcedor diga ao garoto: “Obrigado, Tales, pois seu pai ajudou a nos tirar de uma situação difícil e ele o fez porque o ama muito.”
Para o procurador de Justiça e deputado estadual Fernando Capez, que participou da oitiva no consulado boliviano, há dúvida quanto à trajetória do sinalizador disparado pelo adolescente brasileiro e não é possível afirmar que aquele artefato acertou mesmo Kevin. “A investigação é uma vergonha, não prova nada”, diz ele, que se diz indignado com a postura do Itamaraty. “Sinto que eles estão omissos, não fazem nada de concreto. Tem de fazer pressão diplomática.” Procurado por ISTOÉ, Cabral, o advogado do menor brasileiro, preferiu não se manifestar. Na oitiva, depois de muita insistência, H. A. M. informou que o seu sinalizador teria caído na área verde da arquibancada, a mesma onde ele se encontrava, só que mais adiante. Os assentos do estádio Jesús Bermúdez, em Oruro, estão divididos em três faixas: a mais perto do campo é verde, depois vem a amarela e por fim a vermelha – Kevin estava nesta última. Se isso puder ser comprovado, o depoimento dado pelo menor brasileiro ao procurador boliviano o isenta da culpa da morte de Kevin e, por tabela, os 12 torcedores detidos. “Aquele vídeo que mostra um sinalizador sendo lançado da torcida corintiana não prova nada, nem mesmo que o disparo foi feito pelo menor brasileiro. Se estão usando o vídeo como prova, é chute”, diz o perito Molina.
SEM PRAZO
O ministro Antonio Patriota, do Itamaraty:
morosidade do governo para libertar os brasileiros
Em resumo, o caso dos brasileiros presos na Bolívia não tem solução técnica. Sem ela, fica a dúvida sobre a autoria do disparo do sinalizador que matou Kevin. E, se não há como provar a culpa dos 12 torcedores do Corinthians, eles têm de deixar a prisão em Oruro. Passou da hora de o governo brasileiro arregaçar as mangas de verdade e, livre de interesses paralelos, priorizar uma solução rápida para a prisão arbitrária de 12 de seus cidadãos que, na Bolívia, vivem dias de criminosos sem sequer terem sido acusados legalmente.
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