Prisão, tortura, exílio — e também fim de pesquisas médicas e perseguição a quem defendia um modelo de Saúde universalizado e gratuito, que só viria com a redemocratização. No ano em que o golpe que levou o Brasil à ditadura militar completa meio século, mais uma sombra desse período começará a aparecer: no 1º semestre deste ano acontecem os primeiros depoimentos da recém-instalada Comissão da Verdade da Reforma Sanitária, que vai apurar casos de violação de direitos humanos pela ditadura especificamente contra médicos e trabalhadores da Saúde no país.
Lançada
no Rio no fim de 2013, em congresso da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco), a Comissão é organizada pela Abrasco e pelo Centro
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). A coordenação é da médica
Anamaria Tambellini, professora aposentada da UFRJ e da Fiocruz.
—
Além de realizar audiências e tomar depoimentos, vamos buscar
documentos e arquivos. Todo o material que produzirmos vamos enviar à
Comissão Nacional da Verdade — diz Anamaria, destacando que a Comissão
não tem prazo para concluir os trabalhos, que contarão com núcleos já
formados em São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraná, Distrito Federal e
Mato Grosso.
Além
de investigar violações, a Comissão também terá como alvo profissionais
da área que colaboraram com o regime, em sessões de tortura ou em
expedição de atestados, por exemplo. Um
dos casos de perseguição a serem apurados, talvez o mais simbólico, foi
contra pesquisadores da Fiocruz, no Rio, episódio que acabou conhecido
como “massacre de Manguinhos”.
Carreiras interrompidas - Outro
caso de perseguição foi o de José Ruben Bonfim. Primeiro presidente do
Cebes e hoje médico sanitarista na prefeitura e no governo de São Paulo,
o pernambucano estava, em 1973, no 6º ano de Medicina da UFPE. “Ainda
não tinha 24 anos” quando quase foi sequestrado, conta — e seu quase
sequestro incluiu até esconderijo em convento.
—
Eu tinha ligação com a Ação Popular. Atendia, como médico, muitos de
seus integrantes, por exemplo, o dirigente José Carlos da Matta Machado —
lembra Bonfim, que na época trabalhava no Hospital Pedro II, então o
hospital universitário da UFPE. — Um dia, em setembro, quando muitos da
Ação Popular foram mortos em Pernambuco, dois homens bem-vestidos
surgiram no hospital e vieram perguntar logo a mim se eu sabia onde o
José Ruben estava. Eles não sabiam como eu era. Eu disse “Deixa eu ver
se ele está ali” e fingi que ia procurar. Fui esperto, né?
Bonfim
foi direto até um professor, que tentou sair do hospital com ele
escondido no carro, mas já tinham fechado as saídas do Pedro II. O então
estudante de Medicina acabaria escapando a pé mesmo, pela Favela dos
Coelhos, no entorno do hospital:
—
Liguei para outro professor, muito meu amigo. Ele tinha uma irmã
freira. Foi me buscar na favela e me levou até o convento onde ela
ficava, em Olinda. Fiquei escondido lá por três meses, com conhecimento
da madre superiora. Depois, fui de ônibus até João Pessoa (PB); de lá,
para o Rio; e, então, para São Paulo. Soube depois que até detiveram meu
irmão achando que era eu.
Participante
da fundação do Comitê Brasileiro pela Anistia e hoje, aos 64 anos,
integrante da Comissão da Verdade da Reforma Sanitária, Bonfim conta ter
tido vários colegas de faculdade torturados; alguns ficaram com
perturbações psicológicas:
—
Muitas possibilidades de carreiras foram interrompidas. Essa Comissão,
além de revelar a verdade, vai ter o mérito de ser pedagógica, pois
muita gente das novas gerações não conhece a perseguição sofrida pelo
movimento da reforma sanitária, responsável, com orgulho, por construir
na Constituição os artigos que criaram o SUS. A perseguição ao nosso
movimento ocorreu porque só na democracia se podia ter um sistema de
Saúde equânime — resume Bonfim.
Outro caso foi o da prisão e da tortura do médico Irun Sant’Anna, falecido em 2012.
—
Foi preso várias vezes, e muito torturado. Onde mais sofreu foi no
Dops. Chegou a me dizer depois que, lá, se tivesse tido a chance, teria
se matado — conta o advogado Modesto da Silveira, homenageado no
lançamento da Comissão e que defendeu San’Anna, integrante do PCB e
fundador da UNE. A perseguição à Saúde no país não era apenas contra os profissionais. Pesquisas e projetos também foram vítimas do regime.
—
Questionávamos o sistema oferecido, baseado nos Inamps, onde só era
atendido quem tinha carteira assinada. Questionávamos os chamados
determinantes sociais da Saúde, ligados à pobreza da população.
Incomodávamos a ordem. Foi um movimento contra-hegemônico que se
desenhou nos anos 70, período mais duro do regime — diz Ana Costa,
presidente atual do Cebes.
A
fundação do próprio Cebes em 76 foi uma forma de criar um espaço de
debate num período em que reuniões eram malvistas. Criaram um “grupo de
estudos”, mas que também fazia debate político: por exemplo, nos
lançamentos das edições da revista “Saúde em Debate”, criada pelo Cebes
também em 76 e até hoje referência no setor.
—
Algumas vezes, pessoas foram impedidas de ceder espaços para os nossos
lançamentos. Uma vez, chegamos a um lugar onde estava marcado o evento, e
a pessoa avisou: “Vão embora, que vai dar polícia” — diz Ana, elencando
integrantes do movimento da reforma sanitária perseguidos pelo regime: —
Eu, a Anamaria, Sergio Arouca, Eleuterio Rodrigues Neto, David
Capistrano Filho.
Anamaria
Tambellini lembra que não foi presa por causa de David, que havia
passado recomendações de que, caso fosse preso — como ocorreu —, “cinco
pessoas deveriam ser avisadas”. Anamaria estava entre elas.
Ela própria também teve dois estudos interrompidos. E que ilustram o tipo de pesquisa que incomodava na época:
—
Eu fazia parte de um projeto sobre saúde do trabalhador, na Fiocruz,
nos anos 70. A gente começou a ir pesquisar, na Delegacia Regional do
Trabalho, documentos sobre acidentes de trabalho. Na 4ª vez, não nos
deixaram mais entrar. Usaram a palavra mágica: aquele assunto era de
“segurança nacional” — lembra.
Também nos anos 70, ela e outro pesquisador da Fiocruz, Eduardo Costa, faziam um estudo sobre meningite:
—
Havia epidemia em áreas do Estado do Rio — diz Anamaria. — Não
conseguimos nem submeter a pesquisa a financiamento. Não era
interessante que se falasse em epidemias por aí.
—
Todos esses casos não representaram uma violência apenas contra pessoas
— completa Ana Costa. — Foi uma violência contra o próprio
desenvolvimento da Saúde no país.
Em
1º de abril de 70, por um decreto baseado no AI-5, Haity Moussatché,
Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid Mello Perissé, Hugo de
Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito
Cavalcanti tiveram os direitos políticos cassados. Como o decreto só
cassava os direitos, mas não afastava os pesquisadores do seu trabalho,
novo decreto viria mais tarde para aposentá-los “compulsoriamente”,
juntamente com Domingos Arthur Machado Filho e Masao Goto.
No
total, dez foram afastados. Mas quase foram 11 — outro dos perseguidos
foi Walter Oswaldo Cruz, filho de quem dava nome à própria instituição,
diz a pesquisadora da Fiocruz Wanda Hamilton, que escreveu sobre o caso:
—
Seriam 11 se Walter não tivesse morrido em 67. Isso porque ele sofreu
uma perseguição tremenda depois de 64, quando Francisco da Rocha Lagoa
assumiu a direção do IOC (Instituto Oswaldo Cruz).
A
direção do Instituto, conta Wanda, passou a enviar ofícios a entidades
internacionais e universidades pedindo que os auxílios financeiros
passassem “pelo seu crivo”. Com isso, o laboratório da seção de
hematologia, dirigida por Walter — acusado de propaganda subversiva e
práticas de proselitismo político —, perdeu auxílios da Fundação Ford e
teve de devolver material científico.
Já
quem teve os direitos políticos cassados soube da cassação pelo rádio.
“Era dia 1º de abril. Uma moça que trabalhava com o Herman Lent chegou
toda assustada e disse: ‘Dr. Sebastião, telefonaram para cá dizendo que
vocês foram cassados’. Eu disse: ‘Você esquece que hoje é 1º de abril?’.
Daqui a pouco, alguém telefonou: ‘Olha, está dando na Rádio Globo que
vocês foram cassados’. Aí liguei meu rádio e ouvi a notícia”, contou
Sebastião José de Oliveira no depoimento que deu em 86 à Casa de Oswaldo
Cruz, setor da Fiocruz cujo acervo contém depoimentos e imagens dos
perseguidos.
Nem
todos foram exilados, e apenas um, Fernando Ubatuba, foi preso, em 68:
ficou 14 dias incomunicável no paiol de pólvora do Exército, em
Paracambi. O grupo só seria reintegrado à Fiocruz em 86, em ato público
durante a presidência de Sergio Arouca na fundação.
—
O governo militar não deu explicação oficial sobre os motivos da
cassação. Muitas possibilidades foram levantadas, pelos próprios
pesquisadores. Alguns ressaltam aspectos pessoais, outros, inimizades na
instituição, ou chamam a atenção para divergências sobre a política
científico-institucional — diz Wanda, sublinhando o que significou a
perseguição para o país: — A instituição estava na ponta do conhecimento
científico brasileiro em entomologia, micologia, fisiologia. Todos os
cassados e aposentados eram líderes de projetos, e seus laboratórios
foram praticamente desmontados.
(Fonte: O Globo)
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