1.01.2014

'Tem de me engolir', afirma 1ª chefe de polícia de São Paulo

Quando Norma Bonaccorso era criança, ela lembra, queria ser cientista ou xerife.
Hoje, aos 54 anos, ela exerce as duas atividades e é dona de um currículo que une formação em biologia com doutorado em direito penal. Tudo feito pela USP.
Ela é a primeira mulher a chefiar a Superintendência da Polícia Técnico Científica, que, ao lado das polícias militar e civil, tem sido considerada a "terceira polícia" do Estado de São Paulo.

Eduardo Knapp/Folhapress
Norma Bonaccorso,54, chefe da Polícia Técnico Científico, em seu gabinete
Norma Bonaccorso,54, chefe da Polícia Técnico Científico, em seu gabinete
Chegou lá como um trator. Afastou cerca de dez pessoas suspeitas de corrupção, conseguiu R$24 milhões do governo para reformas e aumentou o número de cargos em 64% -não havia concursos para vagas novas desde 1986.
Há resistência por parte de uma polícia que só tem chefes homens? Sim, claro. "Mas isso não é oficial. Manda vir falar comigo que eu quero ver se tem peito. Não tem peito."
Em seu gabinete, decorada com cáctus e com miniaturas de gatos -ela tem três de verdade-, Bonaccorso falou com a Folha.
*
Folha - Como é ser a primeira mulher chefiando a polícia? Norma Bonaccorso - É algo bastante solitário. Recentemente eu recebi uma comenda dos heróis de 32 e no evento só tinham homens na mesa. Geralmente é assim. Tem homens que aceitam [uma líder mulher] e tem homens que não aceitam. Entre os policiais, a maioria não aceita.
Como você sabe quando um homem não aceita?
Eles te olham de cima a baixo. Você percebe que ele está pensando "o que essa mulher está fazendo aí?". Dificilmente há mulheres na liderança na polícia. Dentro da superintendência, só 30% dos postos são femininos. E há muito menos mulheres nos postos de comando.

A senhora já passou por algum episódio desrespeitoso por ser mulher?
Sim, mas não sei se é porque eu sou mulher, porque sou perita ou as duas coisas.

Sempre me vi lado a lado com os homens. Não me sinto fragilizada. A mulher é forte como o homem ou até mais. Tem gente que nem olha quando eu falo. Mas eu falo por cima, eu falo por último. Tem de me engolir. Aí a pessoa faz aquela cara como se eu nem existisse. O secretário [de Segurança Pública, Fernando Grella] nos deu um assento [nas reuniões sobre segurança pública] e nos trata como a terceira polícia. Eu sento lá e sou mulher.
Já tive notícias de gente que achou um "horror" uma mulher participar desse tipo de reunião. Mas isso não é oficial porque ninguém veio falar comigo. Manda vir falar comigo que eu quero ver se tem peito. Não tem peito.
Alguém já deixou de falar com a senhora nessas reuniões?
Sim. Já participei de uma reunião em que uma pessoa cumprimentou todos os presentes com formalidades e me pulou. Eu acho que foi falta de educação mesmo.

A senhora colocou alguma mulher em cargos de chefia?
Coloquei. Já havia algumas mulheres. Se é competente a gente coloca. Eu não escolho por gênero. Se tiver homem bom, eu coloco também. Se é talhado para o cargo, a gente coloca. Eu não sou preconceituosa com homem.

A senhora tem alguma preocupação com roupa por causa do ambiente masculino?
Tenho. Eu procuro usar roupas que não marquem o meu corpo. Quero que prestem atenção no que eu falo, não no meu corpo. Eu nunca quis chamar atenção para o meu corpo, mas sim para aquilo que sou. Eu sempre uso roupa mais larga. Aqui no Brasil a gente é assim meio açougue [risos]...

Já recebeu alguma cantada no ambiente de trabalho ou os homens ficam intimidados?
Sempre fica a dúvida. Tem gente que cantou, mas é meio grosseiro. Quem canta, não tem noção. Aí é inimputável [risos]! Ou o cara é sutil demais e eu nem percebo. Aí, eu que sou inimputável...

A senhora tem algum lado "mulherzinha"?
Sim, às vezes faço um programa mulherzinha de sábado com minha irmã. Eu vou com ela ao Lar Escola São Francisco, vou no shopping. E vou à Sala São Paulo. Domingo eu durmo. Durmo muito porque eu fico muito cansada. De mulherzinha mesmo... eu vou ao cabeleireiro de vez em quando.

Que polícia a senhora encontrou ao assumir a chefia em abril?
Fizemos um levantamento e encontramos ilhas de excelência e de mediocridade.

Nós éramos um departamento de Polícia Científica dentro da Polícia Civil, que congregava o IML [Instituto Médico Legal], o IC [Instituto de Criminalística] e o Instituto de Identificação, que emite as carteiras de identidade e continuou com a Polícia Civil.
Hoje, a Polícia Científica não tem uma escola própria e nem corregedoria própria, por isso que é uma "pseudo-autonomia". Mas tem autonomia administrativa e financeira. Ela poderia ter crescido e construído mais.
Nós montamos uma pequena equipe enxuta que acabou ficando com uma pessoa só, o perito Antonio de Carvalho Nogueira Neto para visitar todos os dias ICs e IMLs do [Estado de São Paulo] -que, em muitas cidades, funcionam num mesmo prédio. Ele visitou todas as unidades, mais de cem unidades nos rincões. Fotograva equipamentos, ouvia as pessoas, via a infraestrutura. Ele fez uma radiografia da situação.
O que são as ilhas de mediocridade encontradas?
Não digo mediocridade técnica, mas há uma carência material muito grande.

E então o governo liberou R$ 24 milhões para obras?
Diante desse relatório, o governador liberou R$ 24 milhões para obras emergenciais. Começaram a pipocar situações tenebrosas principalmente em IMLs. O Nogueira ia para os locais e dizia: precisa demolir, precisa de um terreno, precisa regularizar, precisa de um projeto etc. Eu negocio orçamento -aqui vem o lado turco [risos]. Depois vêm as licitações.

Nós conseguimos com o governador a criação de cargos -64% do efetivo do nosso pessoal aumentou: perito criminal, médico legista, atendente de necrotério, auxiliar de necropsia, fotógrafo técnico policial e desenhista técnico policial. Eram 3.800 cargos, passamos para 5.200. São 1.800 cargos criados.
Nós não temos uma lei orgânica, estamos dentro da lei orgânica da Polícia Civil. O último concurso que havia sido feito de perito tinha sido em 1986 para preencher cargos que já existiam, por exemplo quando morria alguém.
Que marca a senhora quer deixar na sua gestão?
A luta contra a corrupção. A corrupção é inadmissível. Uma das consequências da corrupção é a injustiça, que são duas coisas indignas.

A senhora pretende fazer ações nesse sentido?
Já estamos criando. Uma das coisas que nós queremos é a normatização dos procedimentos de atendimento, de local, de perícias. Estamos começando a instituir isso tudo. Nós estamos falando de um instituição técnico científica. A perícia é uma referência para sociedade. Precisa ser algo justo. Você assiste o "Jornal Nacional" e ouve todos os dias: "o laudo vai mostrar isso", a "perícia vai revelar aquilo". A expectativa é sobre o que a perícia vai mostrar. Já pensou se a perícia falha? Tudo é a perícia.

A senhora tem estimativa de custo de tudo isso que está pensando implantar?
Não. Mas eu acredito que São Paulo é bem rico. E que merece isso.

Folha
ROGÉRIO PAGNAN
SABINE RIGHETTI

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