A tira, do saudoso cartunista Glauco, mostrava como a rotina estava colada ao cidadão contemporâneo, numa caricatura parecida com a do personagem de Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos” – que, fora da esteira de produção, seguia condicionado a apertar parafusos.
Na era do trabalho imaterial, em que os homens abandonaram o chão de fábrica para povoar as salas com ar condicionado e computadores, a lógica se repete. Chegamos em casa, ligamos o computador e ficamos alerta. Tudo para saber se veio enfim o e-mail de alguém (geralmente, do trabalho). Imaginamos que temos sempre muito o que resolver e não nos permitimos respirar. De vez em quando falamos alto, batendo no peito, o copo de cerveja para o alto: “ainda vou mandar tudo para o inferno e vou vender coco na praia”. A praia está lá, o coco também, mas alguma coisa entre a vontade e o discurso se perde na ressaca do dia seguinte. E ficamos no mesmo lugar por um motivo simples: acreditamos que, sem nossos ombros, o mundo não se suportaria.
Pelo menos foi essa a impressão que fiquei ao ver dois dos filmes que mais me marcaram neste ano. O primeiro, “Biutiful”, de Alejandro González Iñarritu, era destruidor. Uxbal, um homem de meia-idade, interpretado por Javier Bardem, descobre que está com câncer e entra em desespero por não saber com quem deixar os filhos. A ex-mulher é viciada, inconstante, pouco confiável. À medida que vai adoecendo, mais responsabilidades ele assume: Uxbal é um agenciador de trabalhadores ilegais que quanto mais tenta estender sua passagem pela Terra mais percebe que já não faz parte dela. O ponto curioso é que o mesmo personagem tem um dom incomum: consegue convencer os espíritos a deixaremos corpos que já morreram. Os que não conseguem se desprender, ficam presos nos telhados das casas, que só Uxbal consegue observar. Mas, quando chega a sua vez, ele faz de tudo para não se desvencilhar da própria vida: os ombros suportam o mundo, mas, diferentemente do poema de Drummond, ele é muito mais pesado que a mão de uma criança. Por isso tenta, inutilmente, assumir todas as responsabilidades do mundo antes de sua partida.
Aparentemente, “A Criança da Meia-Noite” nada tem em comum com o longa de Iñarritu. No filme, a diretora Delphine Gleize capta com mão suave a amizade entre um médico, David (Vincent Lindon), e Romain (QuentinChallal), um pré-adolescente com uma doença rara que, se ficar exposto à radiação ultravioleta, desenvolverá um tipo de câncer de pele que o levará à morte.
David cuida do menino desde criança. Não à toa, durante boa parte do filme a impressão que se tem é que são pai e filho. Aos poucos, descobrimos o que os une: para ser um bom médico, David deixou de ser um bom pai, um bom marido e provavelmente um bom amigo. Deixou os finais de semana, as horas de lazer, os momentos de descanso. Romain, por sua vez, é o garoto estranho da turma, revoltado por ver o pai fora de casa (pensa que a culpa pela separação é dele) e por se privar dos luxos comuns da sua idade, como andar ao sol. Para não morrer, anda com uma roupa protetora que o leva a ser chamado de menino-astronauta. E só consegue surfar ou praticar qualquer esporte perto da meia-noite.
Um dia David precisa ir embora. Vai assumir um posto na Organização Mundial do Comércio, em Genebra, e precisa deixar o hospital, localizado no interior da França. A separação dos amigos é, como se pode esperar, dilacerante – e ao fundo da sala era possível ouvir o congestionamento nasal coletivo.
O menino , como se poderia esperar, se revolta diante do que considera traição do médico-amigo. E o médico, que se apegou com todas as forças à missão de salvar Romain desde o dia em que o menino nasceu, passa a se questionar sobre a nobreza da própria escolha: faz sentido deixar quem precisa da gente para trás para ter descanso, prestígio ou simplesmente uma outra vida?
É o que torna a separação algo terrível: elas não são irremediáveis como a morte, mas têm uma faceta do imprevisível que atormenta. Como médico, David tem mais que ninguém a noção sobre responsabilidades. Pode ser acionado a qualquer momento, e seu horário de trabalho é sempre superior aos momentos de lazer e descanso. O filme gira em torno de sua angústia, que cresce à medida que descobre que, fatalmente, será substituído – e bem substituído. Por isso, tem tanta dificuldade em passar o bisturi e confiar que, nas mãos da doutora Louise (Emmanuelle Devos), Romain estará bem encaminhado.
Um belo dia, descobre que, sem ele, tudo voltará a ficar bem. Na grande virada do filme, o médico responsável pela vida do melhor amigo é quem passa a se comportar como o menino da história. Ao rejeitar a ideia de ser substituído, passa a agir como a criança que questiona os pais se eles chorariam se um dia ela morresse. O medo é plausível: ouçam ou não nossos passos, temos sempre a certeza cruel de que as ruas pelas quais passamos um dia continuarão a existir. E as pessoas que nos amaram podem até chorar, se revoltar, se solidarizar. Mas um dia elas também cumprirão o rito de passagem, levando com elas a memória deque um dia existimos, num caminho sem volta até o total esquecimento.
Do lado do médico, que precisa assumir para si todas as responsabilidades do mundo, o peso parece ainda maior. Numa das cenas, um ano depois de sua mudança para Genebra, David se encontra com Romain num shopping center e pergunta: “Você tem ideia de como me senti?”. O menino, então, responde: “Não importa. O médico aqui é você”.
A chantagem, trunfo da insolência juvenil, não poderia ser mais cruel. Porque de um paciente se espera a fraqueza, a revolta e o choro. De um médico, não. É o troco cobrada por aqueles que gostamos. Eles exigem sempre esforço integral, apesar dos discursos sobre liberdade e amores gratuitos, incondicionais. Mentira: no fundo, sempre seremos pressionados para ficar e abrir mão da própria vida. Qualquer coisa fora isso é traição ou motivo para revolta, alarde, chantagem. Prisão, enfim.
Talvez seja por isso que, num mundo em que assumimos cada vez mais novos papeis, com medo de que o mundo desabe sem nossa presença, resolvemos sempre ficar, e estendemos as horas (no trabalho, nas missões, na vocação para carpinteiro do universo). E vigiamos, não delegamos e morremos. Morremos sempre pelos outros, pelas missões que assumimos, mas também pelo pavor de sermos substituídos e, pior, de um dia sermos esquecidos.
Nesse jogo, David e Uxbal estão em posição diferentes. Um deve evitar a morte e outro vai morrer. Mas o caminho aponta para a mesma direção: um mundo sem eles, e uma vida que simplesmente continua. Estão na mesma situação poetizada por Drummond muitos anos antes. “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda”.
Para as crianças, o medo pode ser difuso. Mas, para um adulto, nada pode ser mais desesperador.
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