Filme sobre a separação de médico e garoto com doença rara mostra lado perverso da amizade e o drama de ser substituível. Por Matheus Pichonelli
A tira, do saudoso cartunista Glauco, mostrava como a rotina estava colada ao cidadão contemporâneo, numa caricatura parecida com a do personagem de Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos” – que, fora da esteira de produção, seguia condicionado a apertar parafusos.
Na era do trabalho imaterial, em que os homens abandonaram o chão de fábrica para povoar as salas com ar condicionado e computadores, a lógica se repete. Chegamos em casa, ligamos o computador e ficamos alerta. Tudo para saber se veio enfim o e-mail de alguém (geralmente, do trabalho). Imaginamos que temos sempre muito o que resolver e não nos permitimos respirar. De vez em quando falamos alto, batendo no peito, o copo de cerveja para o alto: “ainda vou mandar tudo para o inferno e vou vender coco na praia”. A praia está lá, o coco também, mas alguma coisa entre a vontade e o discurso se perde na ressaca do dia seguinte. E ficamos no mesmo lugar por um motivo simples: acreditamos que, sem nossos ombros, o mundo não se suportaria.
Pelo menos foi essa a impressão que fiquei ao ver dois dos filmes que mais me marcaram neste ano. O primeiro, “Biutiful”, de Alejandro González Iñarritu, era destruidor. Uxbal, um homem de meia-idade, interpretado por Javier Bardem, descobre que está com câncer e entra em desespero por não saber com quem deixar os filhos. A ex-mulher é viciada, inconstante, pouco confiável. À medida que vai adoecendo, mais responsabilidades ele assume: Uxbal é um agenciador de trabalhadores ilegais que quanto mais tenta estender sua passagem pela Terra mais percebe que já não faz parte dela. O ponto curioso é que o mesmo personagem tem um dom incomum: consegue convencer os espíritos a deixaremos corpos que já morreram. Os que não conseguem se desprender, ficam presos nos telhados das casas, que só Uxbal consegue observar. Mas, quando chega a sua vez, ele faz de tudo para não se desvencilhar da própria vida: os ombros suportam o mundo, mas, diferentemente do poema de Drummond, ele é muito mais pesado que a mão de uma criança. Por isso tenta, inutilmente, assumir todas as responsabilidades do mundo antes de sua partida.
Aparentemente, “A Criança da Meia-Noite” nada tem em comum com o longa de Iñarritu. No filme, a diretora Delphine Gleize capta com mão suave a amizade entre um médico, David (Vincent Lindon), e Romain (QuentinChallal), um pré-adolescente com uma doença rara que, se ficar exposto à radiação ultravioleta, desenvolverá um tipo de câncer de pele que o levará à morte.
Romain (QuentinChallal ) é um pré-adolescente com uma doença rara que, se ficar exposto à radiação ultravioleta, desenvolverá um tipo de câncer de pele que o levará à morte
Um dia David precisa ir embora. Vai assumir um posto na Organização Mundial do Comércio, em Genebra, e precisa deixar o hospital, localizado no interior da França. A separação dos amigos é, como se pode esperar, dilacerante – e ao fundo da sala era possível ouvir o congestionamento nasal coletivo.
O menino , como se poderia esperar, se revolta diante do que considera traição do médico-amigo. E o médico, que se apegou com todas as forças à missão de salvar Romain desde o dia em que o menino nasceu, passa a se questionar sobre a nobreza da própria escolha: faz sentido deixar quem precisa da gente para trás para ter descanso, prestígio ou simplesmente uma outra vida?
É o que torna a separação algo terrível: elas não são irremediáveis como a morte, mas têm uma faceta do imprevisível que atormenta. Como médico, David tem mais que ninguém a noção sobre responsabilidades. Pode ser acionado a qualquer momento, e seu horário de trabalho é sempre superior aos momentos de lazer e descanso. O filme gira em torno de sua angústia, que cresce à medida que descobre que, fatalmente, será substituído – e bem substituído. Por isso, tem tanta dificuldade em passar o bisturi e confiar que, nas mãos da doutora Louise (Emmanuelle Devos), Romain estará bem encaminhado.
No papel de David, Vincent Lindon vive um médico com medo de ser substituído
Do lado do médico, que precisa assumir para si todas as responsabilidades do mundo, o peso parece ainda maior. Numa das cenas, um ano depois de sua mudança para Genebra, David se encontra com Romain num shopping center e pergunta: “Você tem ideia de como me senti?”. O menino, então, responde: “Não importa. O médico aqui é você”.
A chantagem, trunfo da insolência juvenil, não poderia ser mais cruel. Porque de um paciente se espera a fraqueza, a revolta e o choro. De um médico, não. É o troco cobrada por aqueles que gostamos. Eles exigem sempre esforço integral, apesar dos discursos sobre liberdade e amores gratuitos, incondicionais. Mentira: no fundo, sempre seremos pressionados para ficar e abrir mão da própria vida. Qualquer coisa fora isso é traição ou motivo para revolta, alarde, chantagem. Prisão, enfim.
Talvez seja por isso que, num mundo em que assumimos cada vez mais novos papeis, com medo de que o mundo desabe sem nossa presença, resolvemos sempre ficar, e estendemos as horas (no trabalho, nas missões, na vocação para carpinteiro do universo). E vigiamos, não delegamos e morremos. Morremos sempre pelos outros, pelas missões que assumimos, mas também pelo pavor de sermos substituídos e, pior, de um dia sermos esquecidos.
Nesse jogo, David e Uxbal estão em posição diferentes. Um deve evitar a morte e outro vai morrer. Mas o caminho aponta para a mesma direção: um mundo sem eles, e uma vida que simplesmente continua. Estão na mesma situação poetizada por Drummond muitos anos antes. “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda”.
Para as crianças, o medo pode ser difuso. Mas, para um adulto, nada pode ser mais desesperador.
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