Saúde pública
Michael Marmot, autor do famoso estudo Whitehall, pioneiro em determinar a relação entre o surgimento da doença e os aspectos sociais associados a ela, diz que crise não é desculpa para diminuir investimentos em saúde
Natalia Cuminale, do Rio de Janeiro
Michael Marmot, professor de Epidemiologia e Saúde Pública da Universidade College London (NHS Confederation/Divulgação)
"A questão é: qual o sentido de tratar as doenças das pessoas, mas depois mandá-las de volta para a mesma situação que as deixa doentes?" — Michael Marmot, professor da University College London e presidente da Comissão de Determinantes Sociais da Saúde na Organização Mundial da Saúde
"Qual o sentido de tratar as doenças das pessoas, mas depois mandá-las de volta para a mesma situação que as deixa doentes?", pergunta Marmot. Ele cita Glasgow, na Escócia, onde a expectativa de vida para os homens mais pobres é de 54 anos - enquanto os moradores mais ricos vivem até os 82 anos. Uma diferença de 28 anos. "As pessoas pensam: se todo mundo ao meu redor morre aos 54 anos, por que vou parar de fumar, limitar o consumo de bebida ou o consumo de calorias?", diz Marmot. Uma relação direta entre a condição social de um indivíduo e sua fisiologia.
Discutir estratégias para reduzir essa desigualdade é o tema da Conferência Mundial de Determinantes Sociais da Saúde, que ocorre no Rio de Janeiro até esta sexta-feira. Representantes de mais de 100 países do mundo, entre ministros e pesquisadores, se reúnem para estabelecer metas e melhorar os indicadores sociais de cada país. Promovido pela Organização Mundial da Saúde, o evento conta com a participação da presidente da entidade, Margaret Chan, do ministro da Saúde do Brasil, Alexandre Padilha, e mais 60 ministros de outras nações.
Marmot, que preside a Comissão de Determinantes Sociais da Saúde na Organização Mundial da Saúde, e também é diretor do Instituto Internacional de Sociedade e Saúde, está no Rio para participar da Conferência e concedeu entrevista ao site de VEJA. "Não digo nada que eu não possa justificar baseando-me em evidências", diz o pesquisador.
Para o senhor, qual a importância de uma conferência como esta? É comum que, ao pensar em saúde, as pessoas pensem em assistência à saúde. É a primeira coisa que vem a cabeça da população e também dos governantes. A Comissão de Determinantes Sociais da Organização Mundial da Saúde, da qual fui presidente, trouxe um conjunto de evidências do mundo inteiro que mudou esse conceito. Está claro que você não precisa apenas de assistência à saúde para ser saudável. A saúde de um indivíduo vai além disso. Depende de aspectos sociais e ambientais. Quando uma pessoa fica doente,ela precisa de atendimento. Mas não é a falta de atendimento que causa a doença. Por exemplo, alguém que tem dor de cabeça, mas não tem aspirina. A deficiência de aspirina não é causa da dor de cabeça. Ela é causada por outra coisa. A questão é: qual o sentido de tratar as doenças das pessoas, mas depois mandá-las de volta para a mesma situação que as deixa doentes? Sabemos que as circunstâncias que as pessoas nascem, crescem e envelhecem, como o acesso a dinheiro e recursos, levam a essas condições na vida cotidiana. Alguma coisa deve ser feita.
Você é pioneiro na pesquisa científica sobre a relação entre o surgimento da doença e os aspectos sociais associados a ela. O que se sabe sobre isso até agora? Eu fiz – e continuo fazendo – um estudo longitudinal com funcionários públicos britânicos. É uma população muito interessante de se estudar. Eles excluem as pessoas muito pobres e também os muito ricos. Descobrimos uma gradiente social, ou seja, uma relação entre o nível hierárquico de trabalho e a saúde dos trabalhadores. Funcionários do governo que tinham cargos altos tinham uma saúde melhor do que aqueles com cargos medianos – e estes tiveram melhores resultados do que quem trabalhava em cargos piores. Por que isso importa? Quem disser que isso ocorre por culpa da pobreza, está equivocado. Porque o meu estudo na Grã-Bretanha não está falando de pessoas que vivem no limite da pobreza, com menos de U$1,25 por dia. O que encontramos neste estudo feito com funcionários públicos pode ser replicado para qualquer lugar do mundo — desde Porto Alegre até a Uganda, dos países mais ricos aos mais pobres. É claro que temos que nos preocupar com a extrema pobreza. Mas a preocupação não deve parar por aí. A igualdade de condições também é importante para a saúde das pessoas. A ideia é dar a toda população as mesmas condições de qualidade de vida e de saúde que têm as pessoas do topo da sociedade.
Como o status econômico pode afetar a fisiologia de uma pessoa? Diria que de duas formas. Uma delas é que pessoas com maior nível de instrução são mais ativas fisicamente, menos propensas a fumar e a se tornarem obesas, entre outros hábitos saudáveis. Então, com a educação, as habilidades e o conhecimento, você tem a atitude de controlar a sua vida e pensar no futuro. Tem o luxo de planejar o futuro. Em Glasgow, a expectativa de vida para os homens mais pobres é de 54 anos, enquanto os moradores mais ricos vivem até os 82 anos. Uma diferença de 28 anos. Há um exemplo de um conhecido em Glasgow que disse: “Eu não tenho plano de pensão para quando eu me aposentar”. Ao perguntar por que não, ele disse saber que não viveria tanto tempo. Se eu pensar que todo mundo ao meu redor morre aos 54 anos, por que vou ligar para parar de fumar, limitar o consumo de bebida ou o consumo de calorias? Ao olhar para as causas de morte em Glasgow, nós vemos que muitas têm a ver com drogas, envenenamento, suicídio e mortes violentas — são todas causas psicossociais. E essa é a outra forma. Em outras palavras, as pessoas sentem-se estressadas. Elas não têm o controle de suas próprias vidas e abusam de drogas e de álcool. Se por um lado, há um comportamento de risco, por outro há os causados por estresse, que também têm um efeito claro em relação à biologia.
Como a crise financeira mundial pode afetar as pessoas nesse sentido? De várias formas, em alguns países a qualidade de vida caiu. Nos últimos 12 meses, a inflação subiu cerca de 5% e os salários cresceram 1,2%. Ou seja, as pessoas ficaram quase 4% mais pobres somente neste ano. A crise financeira significa que as pessoas sentem-se pobres, elas estão pobres e as desigualdades aumentam. Não apenas nas áreas econômica e social, mas também na saúde.
Como evitar esse cenário? Existem algumas recomendações. Investir no desenvolvimento da primeira infância, em educação, garantir o emprego e condições de trabalho, ter o mínimo de dinheiro para sobreviver, acesso à saúde e prevenção.
Como investir nesses fatores quando o problema é a falta de dinheiro? É uma questão de visão. Sabemos que para cada dólar gasto no desenvolvimento infantil, há um retorno de sete dólares. O que significa menos delinquência, menos crime, menos desemprego. É fato que não vai retornar amanhã, mas virá a longo prazo. O pensamento a curto prazo é extremamente perigoso para um governo. A crise financeira não pode ser uma desculpa para interromper o investimento em saúde. Você não pode parar de investir em desenvolvimento infantil e educação e justificar isso com a falta de dinheiro. Porque com isso viriam crises ainda piores. Não podemos arcar com isso.
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