Matheus Pichonelli
Cinema
Interpretar exige escolhas. Podemos ser muitos, em diferentes horas do dia, sem que um papel necessariamente esfacele o outro. Mas há momentos em que é preciso se agarrar ao personagem, o que exige virar a chave de comando e simplesmente sufocar os muitos outros papeis dos muitos mundos vastos mundos. Se souber virara chave, o professor sério e sisudo pode ser um devasso dentro de casa. O filho rebelde pode ser um doce na roda de amigos. O traficante pode ser, em casa, o melhor pai do mundo.É como escreveu Mário de Andrade, poeta, romancista, político, musicólogo, historiador, fotógrafo e personagem de si mesmo: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, mas um dia afinal toparei comigo”.
Topar consigo, deve-se supor, exigiria o impossível: a anulação do outro. Somos pais, somos filhos, somos alunos, somos professores, somos chefes e somos subordinados, somos oferta e somos demanda, a depender do espaço ocupado de convivência. Trocamos de papeis e camisetas conforme a ocasião. Mas as mudanças, quando radicais, exigem uma transição, um deslocamento. E é justamente este o argumento apresentado por um sujeito misterioso para convencer Akiko, a jovem universitária interpretada por Rin Takanashi em Um Alguém Apaixonado, a trocar de papeis numa mesma noite. O filme de Abbas Kiarostami, em cartaz em São Paulo, é a história deste frágil e quase inútil deslocamento.
Akiko é apresentada como uma voz não-identificada dentro de um pequeno mas movimentado bar de Tóquio. Ela parece relutar diante da oferta do sujeito que, de repente, senta em sua mesa: passar a noite com um cliente muito importante. Ela não quer. Avisa que, naquela noite, precisa estudar para a prova e precisa visitar a avó, que esta na cidade. Diante da resistência, o sujeito, que logo sabemos tratar-se de um intermediário, avisa: “fique tranquila, a viagem até a casa do cliente leva quase uma hora. Você pode dormir no caminho”.
Nesse intervalo, se tudo corresse bem, Akiko deixaria as vestes da estudante confusa e vestiria outra fantasia. Ponto.
O que acontece dali em diante, diria o olhar desapercebido, seria nada demais. Seria, não fosse a profusão de detalhes e lances captados pela câmera que avisam: nada neste mundo é tão simples.
De fato, Akiko descansa no caminho, como a se preparar para uma noite mal-dormida em que, por dinheiro, será devorada por quem, também por dinheiro, de antemão estaria indisposto a qualquer limite. O que acontece é nem o oposto nem a previsão. No caminho, Akiko tenta se livrar do papel de estudante responsável. Fecha os olhos, bocas, narinas e orelhas para esquecer que é neta, que sente falta a avó, que tem prova no dia seguinte e que poderia simplesmente ser tudo isso sem correr grandes riscos. O que ela encontra, ao seguir para o encontro, é um cliente, Takahashi (Tadashi Okudo), disposto mas incapaz de se livrar do papel de todo dia: um escritor envelhecido, solitário em uma casa forrada de livros e aparentemente preso ao mundo analógico. A insistência do telefone dentro de casa é o primeiro sinal de que a casa não está imune ao frio afora.
Quando tentam localizá-lo, algo parece criar ruído (e Takahashi sempre parece atônito quando toca o telefone, ele que não usa aparelho celular. É como se o mundo afora tentasse desordenar o caos interno).
Transformar-se no cliente da moça exige uma transição delicada (ajudada pelo vinho, pelo jantar, pela boa conversa), mas nem ele nem ela parecem capazes de mudar os papeis apresentados no primeiro lance. Naquela casa o que ela encontra é aconchego, como se o cliente, até então desconhecido, não fosse somente alguém que a lembre do avô, mas sim o próprio avô. É nessa proteção que ela se apoiará para driblar as investidas de Noriaki, o noivo ciumento e controlador, aparentemente tomado pela ira e sem entender os motivos do seu sumiço naquela noite. Poderia ser um filme de suspense, mas nada em Kiarostami seria tão “catalogável”, como havia demonstrado recentemente em Cópia Fiel.
Ao não admitir este lugar fixo, tudo no filme parece rodar em contraposição. Não apenas a ingenuidade sobre o pragmatismo da jovem, ou a docilidade do velho escritor sobre um suposto instinto juvenil. O que está em contraposição é o próprio mundo. De um lado, o mundo estático pelo lado de dentro: dentro da casa, do bar, do carro. A câmera está o tempo todo do lado de dentro. E é essa posição que permite uma vista privilegiada do mundo afora a emitir ruídos (o som do tráfego dá a impressão de que os carros passam dentro da sala dos livros). Do outro lado está o mundo a contrapor o frio e a tensão. Ali, agressões e acidentes parecem na iminência de uma explosão.
Por fim, há a contraposição de ofícios. Noriaki, o noivo, é um trabalhador braçal que abandonou os estudos porque a vida assim tinha determinado. Takahashi é autor de livros de referência em sociologia. Mas quando entra na oficina mecânica de Noriaki, a correlação de forças fica evidente, e a alienação sobre o funcionamento do equipamento simplesmente muda de lugar. (O encontro dos dois faz lembrar o diálogo numa mesa de jantar entre pais e filhos em Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci; o pano de fundo – simbolizado por uma toalha de mesa – soa como um duelo entre estrutura e superestrutura que os jovens apenas começam a captar).
Também estão em contraposição os muitos mundos no entorno de Akiko: o interno e o externo, a brutalidade e a adoração encarnadas pelo noivo, a equidistância entre a cidade grande e a aldeia onde se criou, a vida estudada na faculdade e a vida prática (que o noivo diz não entender) e a convergência entre o velho (intelectual, calmo e compreensivo) e o novo (explosivo, tenso, ofegante). Não é por menos que o diálogo entre os dois rivais, dentro do carro, seja calcado na distância entre eles: quando Takahashi diz que a experiência ensina a não fazer perguntas quando a certeza é clarividente. Porque o jovem Noriak é só perguntas.
Esses mundos em conflito parecem estourar no colo de Akiko quando ela decide, num intervalo de 24 horas, colocar para funcionar dois papeis impunemente. A confusão é levada para a prova do dia seguinte, quando Akiko confunde Émile Durkheim com Charles Darwin – em sociologia, seria como confundir um abacaxi com uma iguana.
Impressiona a cadência com que Kiarostami encaixa as sequências. Os personagens parecem o tempo todo se agarrar nos postes dos papeis apresentados conforme se deslocam (o avô, o cliente, o intelectual, o mecânico atencioso, o noivo impulsivo, o jovem que quer pedir a mão da amada à moda antiga, a menina que quer estudar e a jovem que se esforça para esmagar, sem sucesso, os laços com a família e o lugar de origem).
Não por acaso, uma pergunta é recorrente quando os personagens se encontram: “quem é você?” .
A resposta é tão absurda quanto a pretensão ao autoconhecimento. Akiko nunca sabe com quem está lidando da mesma forma que não saberia responder se é uma prostituta fingindo ser estudante ou uma estudante brincando de ser prostitua. Mentiras e verdades, nestes casos, parecem apenas detalhes. A separação entre esses mundos e papeis, grita Kiarostami sem sequer elevar a voz, é tão fina como uma casca de maçã. Ou os vidros das janelas, as muitas janelas por onde se vê o mundo afora em movimento. Essas janelas não garantem a menor proteção.
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