A
infância é o período da vida em que mais sonhamos. É pelo menos aquele
em que deixamos os sonhos fluírem naturalmente. Por isso, quando me
falam em sonhos, irremediavelmente regresso à minha infância, a fase da
vida em que mais sonhei.
Os sonhos foram uma constante da minha existência, estiveram sempre lá.
Todas as noites, ao deitar, a minha mãe ia dar-me um beijo e dizia “Dorme bem! Sonhos cor-de-rosa!”.
Numa
noite murmurei por entre os lençóis: “Eu não sonho só de noite… e
também sonho sem estar a dormir… e a mãe, como é que sonha?”.
Apreensiva, ela advertiu-me para o perigo que era sonhar acordado, pois poderia levar-nos a fazer muitos disparates…
Sem
ter entendido a sua resposta, perguntei-lhe ainda de que cor eram os
sonhos, se eram mesmo cor-de-rosa porque os meus não eram assim.
“Querida, os sonhos não têm cor porque vêm de noite, retirados das nossas entranhas que são sombrias…”
Mas eu sabia que nada disso era verdade, porque mesmo a dormir os meus sonhos eram coloridos.
Sabia
também, por causa da minha avó, que sonhar era bom, porque Deus sonhava
e Deus era bom. Era crença da minha avó que os sonhos de cada um
poderiam mudar o mundo, tal como tinha acontecido com Adão e Eva que,
segundo ela, “nasceram de um sonho por Deus sonhado”.
Os
sonhos são parte da nossa existência, sendo impossível conceber uma
existência sem sonhos, pois como o poeta anunciava “sempre que um homem
sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma
criança”.
Para muitos, os sonhos são a única esperança nos momentos de grande sofrimento.
Sonhar é o que resta ao Homem quando tiver perdido tudo.
Tudo se vai…
Os sonhos ficam…
E
assumem todo o seu esplendor quando partilhados por muitos. D. Quixote
sabia-o por isso terá dito em dada altura das suas aventuras que:
“Quando se sonha sozinho é apenas um sonho; quando se sonha em conjunto é
o início da realidade”.
Recentemente,
fui à Feira da Ladra e encontrei uma velhinha que vendia roupa fora de
moda e usada. Era uma tarde quente de Agosto e incomodou-me vê-la de pé,
ao sol sem qualquer proteção, nem um simples chapéu. Não resisti e
disse-lhe que o sol estava demasiado forte e que lhe poderia fazer mal.
Sorriu
timidamente ao responder-me que tinha 89 anos e que o calor não tinha
qualquer importância se comparado a tudo o que teve de suportar desde
que, com apenas 9 anos, foi entregue pelos pais a uma tia, por aqueles
não terem meios para a sustentar. Numa ânsia de ser ouvida, contou-me a
vida miserável que teve e que culminou com a recente morte do marido
que, apesar de lhe ter dado muita “pancada”, nunca faltou com o
essencial: comida e medicamentos.
“Descanse em paz!”
Sem família e sem outros meios de subsistência disse-me que ia fazendo pela vida e continuando a sonhar.
Curiosa,
quis saber quais eram os seus sonhos e ela confessou-me que sonhava com
todos os sonhos que não viveu, pois essa era a única forma que
encontrara para se manter viva. “Sabe, se não sonhasse já tinha morrido…
a minha vida foi e é demasiado sofrida e vazia…”
Olhei
para o chão onde jaziam algumas peças de roupa impecavelmente dobradas e
peguei numa saia de algodão, com flores pequeninas e muito coloridas.
“Levo esta! Penso que me serve, o que acha?”
Pegou
na saia, desdobrou-a, olhou-a de perto e voltou a dobrá-la, metendo-a
dentro de um saco de plástico que me passou para as mãos. Paguei e
desejei-lhe boas vendas.
“A
menina hoje comprou-me essa saia… foram os primeiros 3 euros do dia e
metade do dia já passou… mas mesmo que não venda mais nada, já tenho
dinheiro para comer qualquer coisinha logo à noite… a menina ajudou-me a
sonhar mais um pouco!”
“Há
quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta
que nem todas, só as de Verão. No fundo, isto não tem muita
importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos.
Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas
do ano, dormindo ou acordado.” (William Shakespeare)
Cristina Vieira
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