(...) O médico perguntou-lhe, Nunca lhe tinha acontecido antes, quero dizer, o mesmo de agora, ou parecido, Nunca, senhor doutor, eu nem sequer uso óculos, E diz-me que foi de repente, Sim, senhor doutor, Como uma luz que se apaga, Mais como uma luz que se acende, Nestes últimos dias tinha sentido alguma diferença na vista, Não, senhor doutor, Há, ou houve, algum caso de cegueira na sua família, Nos parentes que conheci ou de quem ouvi falar, nenhum, Sofre de diabetes, Não, senhor doutor, De sífilis, Não, senhor doutor, De hipertensão arterial ou intracraniana, Da intracraniana não sei, do mais sei que não sofro, lá na empresa fazem-nos inspecções, Deu alguma pancada violenta na cabeça, hoje ou ontem, Não, senhor doutor, Quantos anos tem, Trinta e oito, Bom, vamos lá então observar esses olhos. O cego abriu-os muito, como para facilitar o exame, mas o médico tomou-o por um braço e foi instalá-lo por trás de um aparelho que alguém com imaginação poderia ver como um novo modelo de confessionário, em que os olhos tivessem substituído as palavras, com o confessor a olhar directamente para dentro da alma do pecador, Apoie aqui o queixo, recomendou, mantenha os olhos abertos, não se mexa. A mulher aproximou-se do marido, pôs-lhe a mão no ombro, disse, Verás como tudo se irá resolver. O médico subiu e baixou o sistema binocular do seu lado, fez girar parafusos de passo finíssimo, e principiou o exame. Não encontrou nada na córnea, nada na esclerótica, nada na íris, nada na retina, nada no cristalino, nada na mácula lútea, nada no nervo óptico, nada em parte alguma. Afastou-se do aparelho, esfregou os olhos, depois recomeçou o exame desde o princípio, sem falar, e quando outra vez terminou tinha na cara uma expressão perplexa, Não lhe encontro qualquer lesão, os seus olhos estão perfeitos. A mulher juntou as mãos num gesto de alegria e exclamou, Eu bem te tinha dito, eu bem te tinha dito, tudo se ia resolver. Sem lhe dar atenção, o cego perguntou, Já posso tirar o queixo, senhor doutor, Claro que sim, desculpe, Se os meus olhos estão perfeitos, como diz, então por que estou eu cego, Por enquanto não lhe sei dizer, vamos ter de fazer exames mais minuciosos, análises, ecografia, encefalograma, Acha que tem alguma coisa a ver com o cérebro, É uma possibilidade, mas não creio, No entanto o senhor doutor diz que não encontra nada de mau nos meus olhos, Assim é, Não percebo, O que quero dizer é que se o senhor está de facto cego, a sua cegueira, neste momento, é inexplicável, Duvida que eu esteja cego, Que ideia, o problema está na raridade do caso, pessoalmente, em toda a minha vida de médico, nunca me apareceu nada assim, e atrevo-me mesmo a dizer que em toda a história da oftalmologia, Acha que tenho cura, Em princípio, porque não lhe encontro lesões de qualquer tipo nem malformações congé-nitas, a minha resposta deveria ser afirmativa, Mas pelos vistos não o é, Só por cautela, só porque não quero dar-lhe esperanças que depois venham a mostrar-se sem fundamento, Compreendo, Pois é, E deverei seguir algum tratamento, tomar algum remédio, Por enquanto não lhe receitarei nada, seria estar a receitar às cegas, Aí está uma expressão apropriada, observou o cego. O médico fez que não ouvira, afastou-se do banco giratório em que se tinha sentado para a observação, e, mesmo de pé, escreveu numa folha de receita os exames e análises que considerava necessários. Entregou o papel à mulher, Aqui tem, minha senhora, volte cá com o seu marido quando tiver os resultados, se entretanto houver alguma modificação no estado dele, telefone-me, A consulta, senhor doutor, Paga à empregada da recepção. Acompanhou-os à porta, balbuciou uma frase de confiança, do género Vamos a ver, vamos a ver, é preciso não desesperar, e quando se encontrou de novo só entrou no pequeno quarto de banho anexo e ficou a olhar-se no espelho durante um longo minuto, Que será isto, murmurou. Depois regressou ao gabinete, chamou a empregada, Mande entrar o seguinte. Nessa noite o cego sonhou que estava cego."
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10.03.2011
"Ensaio sobre a cegueira" (José Saramago)
(...) O médico perguntou-lhe, Nunca lhe tinha acontecido antes, quero dizer, o mesmo de agora, ou parecido, Nunca, senhor doutor, eu nem sequer uso óculos, E diz-me que foi de repente, Sim, senhor doutor, Como uma luz que se apaga, Mais como uma luz que se acende, Nestes últimos dias tinha sentido alguma diferença na vista, Não, senhor doutor, Há, ou houve, algum caso de cegueira na sua família, Nos parentes que conheci ou de quem ouvi falar, nenhum, Sofre de diabetes, Não, senhor doutor, De sífilis, Não, senhor doutor, De hipertensão arterial ou intracraniana, Da intracraniana não sei, do mais sei que não sofro, lá na empresa fazem-nos inspecções, Deu alguma pancada violenta na cabeça, hoje ou ontem, Não, senhor doutor, Quantos anos tem, Trinta e oito, Bom, vamos lá então observar esses olhos. O cego abriu-os muito, como para facilitar o exame, mas o médico tomou-o por um braço e foi instalá-lo por trás de um aparelho que alguém com imaginação poderia ver como um novo modelo de confessionário, em que os olhos tivessem substituído as palavras, com o confessor a olhar directamente para dentro da alma do pecador, Apoie aqui o queixo, recomendou, mantenha os olhos abertos, não se mexa. A mulher aproximou-se do marido, pôs-lhe a mão no ombro, disse, Verás como tudo se irá resolver. O médico subiu e baixou o sistema binocular do seu lado, fez girar parafusos de passo finíssimo, e principiou o exame. Não encontrou nada na córnea, nada na esclerótica, nada na íris, nada na retina, nada no cristalino, nada na mácula lútea, nada no nervo óptico, nada em parte alguma. Afastou-se do aparelho, esfregou os olhos, depois recomeçou o exame desde o princípio, sem falar, e quando outra vez terminou tinha na cara uma expressão perplexa, Não lhe encontro qualquer lesão, os seus olhos estão perfeitos. A mulher juntou as mãos num gesto de alegria e exclamou, Eu bem te tinha dito, eu bem te tinha dito, tudo se ia resolver. Sem lhe dar atenção, o cego perguntou, Já posso tirar o queixo, senhor doutor, Claro que sim, desculpe, Se os meus olhos estão perfeitos, como diz, então por que estou eu cego, Por enquanto não lhe sei dizer, vamos ter de fazer exames mais minuciosos, análises, ecografia, encefalograma, Acha que tem alguma coisa a ver com o cérebro, É uma possibilidade, mas não creio, No entanto o senhor doutor diz que não encontra nada de mau nos meus olhos, Assim é, Não percebo, O que quero dizer é que se o senhor está de facto cego, a sua cegueira, neste momento, é inexplicável, Duvida que eu esteja cego, Que ideia, o problema está na raridade do caso, pessoalmente, em toda a minha vida de médico, nunca me apareceu nada assim, e atrevo-me mesmo a dizer que em toda a história da oftalmologia, Acha que tenho cura, Em princípio, porque não lhe encontro lesões de qualquer tipo nem malformações congé-nitas, a minha resposta deveria ser afirmativa, Mas pelos vistos não o é, Só por cautela, só porque não quero dar-lhe esperanças que depois venham a mostrar-se sem fundamento, Compreendo, Pois é, E deverei seguir algum tratamento, tomar algum remédio, Por enquanto não lhe receitarei nada, seria estar a receitar às cegas, Aí está uma expressão apropriada, observou o cego. O médico fez que não ouvira, afastou-se do banco giratório em que se tinha sentado para a observação, e, mesmo de pé, escreveu numa folha de receita os exames e análises que considerava necessários. Entregou o papel à mulher, Aqui tem, minha senhora, volte cá com o seu marido quando tiver os resultados, se entretanto houver alguma modificação no estado dele, telefone-me, A consulta, senhor doutor, Paga à empregada da recepção. Acompanhou-os à porta, balbuciou uma frase de confiança, do género Vamos a ver, vamos a ver, é preciso não desesperar, e quando se encontrou de novo só entrou no pequeno quarto de banho anexo e ficou a olhar-se no espelho durante um longo minuto, Que será isto, murmurou. Depois regressou ao gabinete, chamou a empregada, Mande entrar o seguinte. Nessa noite o cego sonhou que estava cego."
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