11.19.2012

Em nome da segurança, passamos a acreditar que "povo marcado é povo feliz

Um dedo-duro no peito

Memória é uma coisa muito encantadora mesmo. Sua existência é inquestionável e não sei dizer se ela é controlável, administrável.

Diariamente eu constato isso e hoje vou contar uma dessas lembranças que a minha memória guardou sem que eu soubesse.

Ela --que parece ter vida própria-- decidiu que determinado episódio vivido por mim merecia ser arquivado para que, no momento certo, pudesse reaparecer.

Há uns seis anos eu estava na casa de um criador de cães porque decidira comprar um filhote.

Lá estava eu tentando decidir qual filhote levar --escolha das mais difíceis porque pareciam todos iguais.

Mas, ao mesmo tempo, eu estava bem interessada nas conversas das outras pessoas que estavam ali pelo mesmo motivo que eu.

Devo reconhecer que eu estava assombrada com o conhecimento que aquelas pessoas demonstravam ter a respeito do comportamento dos filhotes: "Se ele se comporta assim agora, quando crescer será de tal maneira" etc.

Bem, depois de pouco tempo, uma compradora decidida escolheu o filhote que levaria e pediu que fosse colocado um chip nele.

Eu, que nunca ouvira nada semelhante, me interessei em saber o que era aquilo, como era colocado no animal e qual a razão para colocar algo chamado chip em um cão.

Creio que eu buscava informações para saber se eu também deveria querer aquela mesma coisa para o meu filhote.

Aí a mulher me contou que o microchip ajudaria no caso de ela perder o seu cão e me deu explicações detalhadas sobre o funcionamento daquele dispositivo --explicações essas que minha memória deve ter achado bobagem guardar, porque não me lembro de nada.

Depois de ouvir atentamente a compradora, decidi que eu não queria aquilo e tive um pensamento.

Foi a esse pensamento que minha memória deu toda a atenção e só descobri isso dias atrás.

Pensei, naquela ocasião, se nós chegaríamos ao ponto de instalar essa tecnologia em seres humanos. E esse pensamento me deu medo, devo confessar.

Mais de seis anos depois desse acontecimento, eu estava lendo o jornal quando uma notícia me chamou a atenção. Uma reportagem anunciava que uma escola em Brasília instalara chips nos uniformes dos alunos do ensino médio para controlar sua presença nas aulas.

Foi ao ler essa reportagem que minha memória decidiu trazer à tona aquele meu pensamento medroso. E, pelo jeito, meu medo também tinha razão de existir.

Vamos mesmo implantar chips --hoje nos uniformes, amanhã, sabe-se lá onde-- nos mais novos para controlar suas vidas. Nós queremos que eles fiquem na escola: que entrem e saiam no horário certo.

Se a escola se comunica com os estudantes, se consegue dar sentido ao que ensina, se os ouve, se não decifra o conhecimento por eles, nada disso parece importar tanto. O que importa mesmo é que lá os alunos permaneçam até o sinal ser dado.

Os pais dos alunos que carregam o chip no uniforme são favoráveis à medida. A diretora, em entrevista, afirmou que serão os pais que decidirão se o chip ficará ou não.

E os alunos? Ah, esses não estão gostando nem um pouco dessa história de carregar um dedo-duro no peito. Mas será que importa o que os alunos acham?

De novo, parece que não. Não importa, por exemplo, oferecer a eles a oportunidade de aprender que fazer escolhas significa arcar com as consequências delas; não importa que eles conquistem autonomia, tampouco que aprendam o que é liberdade.



Rosely Sayão Rosely Sayão,

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