‘Resetando’ o cérebro autista
por Alysson Muotri |
Sinapses são estruturas altamente complexas, resultantes da interação de diversas proteínas e ácidos nucleicos, gerados a partir da atividade de algumas centenas de genes ativados nos neurônios. Infelizmente, o autismo clássico não parece ser resultado de um ou dois genes defectivos, o que favoreceria encontrar formas químicas de intervenção. Na verdade, estudos genéticos recentes têm confirmado que seriam algumas dezenas de genes – centenas, em alguns pacientes – que não estariam funcionando normalmente. Essa complexidade genética é um grande obstáculo na busca de tratamentos. E como se não bastasse, o autismo é comum em diversas outras síndromes genéticas, complicando ainda mais seu estudo. Por exemplo, 25% dos pacientes com a síndrome do X-frágil são autistas e quase 100% dos pacientes com a síndrome de Rett apresentam níveis variados de autismo.
A ideia de que as conexões nervosas estabelecidas depois da “janela de formação” do cérebro, período que reestrutura as sinapses durante o desenvolvimento do sistema nervoso, sejam permanentes é um dos dogmas mais antigos da neurociência. Muitos acreditam que esse tipo de formação cerebral seja permanente, imutável. No entanto, experimentos recentes têm desafiado esse conceito, mostrando que as sinapses e conexões nervosas são mais maleáveis do que se imaginava antes, podendo acomodar certa flexibilidade em circuitos importantes para o cérebro mesmo depois dessa janela. Pretendo aqui revisitar alguns desses dados, tanto em modelos animais quanto em humanos.
Talvez o primeiro indício de que circuitos defeituosos sejam reversíveis tenham vindo dos estudos em modelos animais para a síndrome de Rett. Essa forma sindrômica de autismo tem uma causa genética bem definida, mutações no gene chamado MeCP2. Esse gene tem a capacidade de se associar à fita de DNA e regular a atividade de outros genes. Não é por acaso que mutações no MeCP2 não se restringem à síndrome de Rett, mas foram encontradas em indivíduos com autismo clássico, esquizofrenia e outros tipos de doenças mentais. O gene é considerado por muitos cientistas a “pedra de Roseta” que permitiria a leitura do cérebro, pois funciona como um regulador de outros genes. Decifrar os mecanismos pelos quais o MeCP2 controla o desenvolvimento do cérebro é uma área extremamente dinâmica atualmente.
Em 2007, o grupo escocês do pesquisador Adrian Bird gerou um camundongo transgênico em que podia controlar a atividade do MeCP2 por meio de um interruptor ativado por uma dose transiente de hormônio. No nascimento, o grupo manteve o gene desligado e o animal adulto apresentava uma série de características comportamentais semelhantes aos pacientes com síndrome de Rett e autismo. Ativando o MePC2 antes do término da tal janela crítica de formação do cérebro, o animal conseguia se recuperar dos sintomas. A surpresa veio quando os pesquisadores decidiram ativar o MeCP2 em animais adultos. Esperava-se que os circuitos neuronais não pudessem ser refeitos, mas o resultado surpreendeu. Os animais eliminaram a maioria dos sintomas e se comportaram de forma semelhante a animais que nunca tiveram o gene desligado. A análise dos neurônios mostrou que eles recuperaram a capacidade funcional.
Outro gene, Nlgn3, comumente alterado em alguns indivíduos autistas, ativa uma das proteínas que participam da estrutura física da sinapse. Utilizando-se de um mecanismo semelhante ao do MeCP2, o grupo do cientista Stéphane Baudouin suíço criou um camundongo geneticamente alterado com um interruptor no gene Nlgn3. Ao desligar o interruptor, o Nlgn3 não funcionava corretamente, simulando o que acontece em alguns indivíduos autistas. Animais com o Nlgn3 desligado apresentam conexões nervosas alteradas e comportamentos alterados. Da mesma forma que aconteceu com o MeCP2, ao ativar o Nlgn3 em animais adultos, esses também foram capazes de se recuperar e comportar como animais normais.
Os experimentos em animais sugerem que existe flexibilidade para a reestruturação de circuitos altamente complexos no cérebro, mesmo após o período critico do desenvolvimento. Obviamente, os experimentos em animais não podem ser reproduzidos em humanos por uma questão ética. A duvida de que isso seria possível em humanos vinha do fato que nosso cérebro é muito mais complexo do que o de roedores. No entanto, hoje em dia já existem tecnologias que permitam a reprogramação de células somáticas de um humano adulto a um estágio de células-tronco embrionárias e, a partir daí, a conversão em neurônios funcionais. Apesar das limitações da técnica – os estudos são feitos em laboratórios, não no cérebro das pessoas –, nosso grupo da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos EUA, conseguiu corroborar os dados de camundongos, mostrando que neurônios humanos também são capazes de reestabelecer circuitos defectivos, uma vez formados. Melhor ainda, isso foi demonstrado de forma genética e com o uso de drogas experimentais. O trabalho foi validado de forma independente por diversos outros grupos mundo afora e abriu perspectivas para novos ensaios clínicos, atualmente em andamento.
Recentemente, o grupo liderado por Joe Gleeson, meu colega na Universidade da Califórnia, mapeou alterações genéticas relacionadas com uma forma de autismo familiar que segrega junto com retardo mental e epilepsia ocasionados por casamentos consanguíneos. As mutações afetam o gene BCKDK, responsável pelo metabolismo de certos aminoácidos, gerando deficiência desses nutrientes no cérebro. Camundongos gerados sem o gene BCKDK também apresentaram comportamentos alterados. Incrivelmente, a simples administração de dieta suplementar com aminoácidos foi capaz de reverter os sintomas nos animais, sugerindo que essa forma de autismo possa ser revertida facilmente. Os pacientes estão sendo atualmente submetidos a dietas enriquecidas para aminoácidos e os resultados deverão aparecer em breve.
Essas observações trazem esperanças não só para crianças, mas também indivíduos adultos com autismo e possivelmente outras doenças do desenvolvimento.
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