SÃO PAULO
Na Ponte Estaiada, novo cartão-postal da cidade, o ápice da
manifestação que reuniu 65 mil pessoas na segunda-feira 17
BRASÍLIA
Na mesma segunda 17, manifestantes romperam o cordão de
isolamento da PM e ocuparam a cobertura do Congresso Nacional
RIO DE JANEIRO
100 mil pessoas caminham em paz pelo Centro na noite da segunda 17.
Contra a corrupção, os gastos na Copa e o reajuste nas tarifas de ônibus,
os cariocas tomaram a avenida Rio Branco e a Candelária
Junho de 2013 já fez história. É provável que, daqui a algumas
décadas, brasileiros que tomaram as ruas do País no final do outono
deste ano se reúnam num café, num boteco ou mais possivelmente na
timeline de uma rede social para recordarem, cheios de orgulho, “daquele
junho de 2013”. Quando se formaram multidões que, de um modo
contraditório, pareciam gigantescas afirmações de individualidades. Com
seus rostos únicos, bandeiras variadas, gritos independentes e gestos
singulares. A completa expressão do novo. Daquilo que ninguém ousou
prever e do futuro que ninguém assegurou adivinhar. Esses brasileiros se
sentirão como a geração de 1968, que ainda cultiva as lembranças das
heroicas passeatas contra a ditadura, como os manifestantes de 1984, que
se emocionam com as imagens dos comícios das Diretas-já, e como os
caras-pintadas de 1992, que decretaram o fim de um governo corrupto.
Não se pode subestimar o que já aconteceu nem convém ignorar o que
ainda possa vir. Nas duas últimas semanas, com suas diferentes tribos e
interesses assumidamente difusos, jovens emergiram das redes sociais,
conseguiram levar mais de um milhão de pessoas às ruas, deixaram a
classe política atordoada e fizeram com que prefeitos de 13 capitais e
65 cidades anunciassem a redução das tarifas de transporte público. A
voz das ruas, que parecia anestesiada, se impôs. A opinião pública
revelou sua força. Mesmo sem uma grande causa aglutinadora, fez
reverberar por todos os cantos do País uma insatisfação latente que o
poder institucionalizado desconhecia. Pelo menos 480 cidades
participaram dos protestos. Os manifestantes transformaram as principais
avenidas brasileiras em verdadeiros bulevares da liberdade de
expressão. A nação acordou e, com o recuo dos governantes, descobriu
que, sim, é possível provocar mudanças. Foi um daqueles momentos
emblemáticos em que o povo mostra que as instâncias do poder
constituído, de algum modo, descolaram-se de suas aspirações. “Trata-se
da mais expressiva, surpreendente e rápida vitória popular de nossa
história”, diz Rubens Figueiredo, diretor do Centro de Pesquisas e
Análises de Comunicação (Cepac). Ele explica: “Expressiva por forçar a
rendição dos titulares do Estado mais importante do País e de uma das
maiores cidades do mundo. Surpreendente porque nem o mais atento
analista seria capaz de prever o que aconteceu. E rápida, pois, em
poucos dias, a coisa se resolveu”.
A velocidade com que as demandas das ruas forçaram a recuada das
autoridades foi um triunfo. Apenas 13 dias depois da realização do
primeiro ato na avenida Paulista, em São Paulo, contra o aumento das
tarifas do transporte coletivo, convocado pelo Movimento Passe Livre
(MPL), o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), o governador Sérgio
Cabral (PMDB), o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o
governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), anunciaram a completa
revogação dos reajustes, tanto de ônibus urbanos como de metrô, trens
metropolitanos e, no caso do Rio, das barcas. Em dezenas de cidades,
administradores de todas as colorações partidárias se viram obrigados a
seguir pelo mesmo caminho. Foi uma vitória e tanto para um movimento
que, de início, era menosprezado, difamado como partidário e
brutalmente reprimido. O show de violência policial com que o governador
de São Paulo, Geraldo Alckmin, brindou as manifestações de protesto da
quinta-feira 13 serviu como impulso decisivo para que o protesto
ganhasse adesões e força.
Os jovens, a maioria estudantes universitários, compõem o núcleo das
manifestações. A eles, juntaram-se outros grupos, carregando todos os
tipos de demandas e uma sensação de insatisfação generalizada. A
diversidade de rostos indicou a pulverização de causas. Os manifestantes
querem muito mais do que evitar um aumento de passagem. Eles sonham com
um país melhor. Gritam contra a corrupção, contra os gastos públicos
com a Copa do Mundo, contra a má qualidade de serviços públicos, contra a
precariedade da saúde e da educação, contra a PEC 37 (projeto que busca
tirar do Ministério Público o poder de investigação). Com essa demanda,
por sinal, já vislumbram nova vitória. Escaldado com os protestos, o
presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), adiou a votação
da PEC. Antes prevista para o dia 26, foi oportunamente transferida para
a primeira semana de julho.
A atual onda de protestos é diferente em quase tudo das manifestações
que o Brasil conheceu décadas atrás. O ex-líder estudantil Vladimir
Palmeira, por exemplo, precisou dos centros acadêmicos politizados e dos
sindicatos controlados pela esquerda para conseguir convocar, em 1968,
os manifestantes da Passeata dos 100 Mil, um dos marcos da luta contra a
ditadura militar antes do AI-5. Era necessário promover pelo menos meia
dúzia de passeatas até obter uma grande mobilização como aquela. Hoje, o
local físico do manifesto são as redes sociais, sem fronteiras. Segundo
a professora do Departamento de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj,
Alessandra Aldé, não só o cenário político-social do Brasil mudou. “As
redes sociais têm um papel importante nesse processo, porque permitem o
envolvimento de pessoas que talvez não estariam engajadas politicamente.
A troca de informação é muito mais intensa e permite chegar a outros
grupos”, diz ela. As passeatas não são mais embaladas por comícios, não
há lideranças com seus discursos inflamados sobre palanques ou ídolos
mitológicos guiando pensamentos. Os fugazes gritos de guerra que surgem
da multidão começam a ser cunhados no Twitter, no Facebook e no
Instagram. Os procedimentos a serem adotados durante os protestos também
são determinados pelas redes. Antes das manifestações das últimas
semanas, a internet espalhou um manual para participantes nas ruas, com
indicações sobre como “lidar com gás lacrimogêneo e bombas”. As redes
também difundiram o mapa colaborativo da chamada “revolta do vinagre” –
com locais de concentração em várias cidades e uma central de ajuda para
participantes, informações sobre os pontos sem conflito potencial,
rotas livres e socorro a feridos em confrontos. Os compartilhamentos
impactaram potencialmente mais de 79 milhões de internautas.
SENTIDO ÚNICO
Multidão de 30 mil pessoas fecha uma das pontes que ligam
a ilha de Florianópolis ao continente na quinta-feira 20
O caráter apartidário é outra novidade dos protestos atuais. Há 30
anos não se viam manifestações de rua sem as bandeiras vermelhas do PT
tremulando. Agora é tudo diferente, o que inquieta os políticos. Entre
os manifestantes era possível ver cartazes que diziam “Nenhum partido me
representa”. Quem desfraldava bandeiras, mesmo de agremiações bastante
vinculadas aos movimentos estudantis como PSOL, PSTU E PCO, acabava
rechaçado pelos participantes. Na quinta-feira 20, na “manifestação da
vitória”, na avenida Paulista, em São Paulo, estandartes petistas foram
arrancados das mãos de militantes e rasgados. A determinação do
presidente do PT, Rui Falcão, de levar seus correligionários à rua, após
meses de abstinência forçada, quase degenerou em pancadaria. No Rio,
bandeiras da CUT tiveram a mesma sorte.
A crise de representatividade dos partidos é uma resposta, em grande
parte, a episódios recentes em que seus próprios líderes expõem a falta
de compromisso com programas e bandeiras, necessários para o bom jogo
político. E abre brecha para imagens preocupantes. Em Brasília, na
semana passada, surgiu uma faixa que dizia: “Chega de políticos
incompetentes! Intervenção militar já!” A mesma mensagem apareceu depois
em São Paulo, assinada por militares aposentados que fazem pregações
autoritárias pelo País. A presença de grupos como esse – pequenos, mas
barulhentos como os vândalos que espalharam violência pelas
manifestações Brasil afora – revela uma face preocupante do movimento: a
linha tênue do apartidarismo, que é positiva ao tentar evitar que os
manifestantes virem massa de manobra das instituições, mas pode
facilmente descambar para a manipulação por facções com interesses
escusos. Os próprios líderes do MPL decidiram abandonar a passeata da
quinta-feira em São Paulo e anunciaram na sexta que não convocariam
novas manifestação, após identificarem a presença de infiltrados.
“Militantes de extrema direita querem dar ares fascistas ao movimento”,
afirmou o professor de história Lucas Oliveira, um dos porta-vozes do
MPL.
A diversidade de opiniões é encarada pelos manifestantes como
virtude. A pedagoga Bernadete Franco foi para a passeata em São Paulo
com o objetivo de protestar pela melhoria nas condições da educação no
Brasil. “Dá uma felicidade ver essa gente toda aqui. São Paulo acordou e
resolveu sair do Facebook para vir às ruas. O caráter difuso é nossa
maior força”, disse Bernadete. A aposentada Estela Camargo, 60 anos,
afirmou que protestava pelos altos impostos. “A gente paga educação e
saúde duas vezes”, lamentou. “Para onde vai esse dinheiro?” Até
estrangeiros resolveram se unir aos protestos. O gerente de marketing
Batiste Denay, 25 anos, está no Brasil há um ano e meio e já se sente
responsável por repetir aqui o que fazia na França, seu país de origem,
quase todas as semanas: sair às ruas. “Nós, franceses, temos essa coisa
de protestar. O mínimo que eu poderia fazer seria participar aqui
também.”
COMEMORAÇÃO E TENSÃO
Líderes do MPL festejam redução da tarifa na quarta-feira 19 (acima).
No dia seguinte, um jovem morreu em Ribeirão Preto
e houve conflitos com militantes do PT em São Paulo
“A revolução contemporânea é a da incerteza”, já definiu o filósofo
francês Jean Baudrillard, um especialista em analisar o mundo
interconectado que é a marca do século 21. E quando nesse tempo ainda
surge algo com o signo inequívoco do novo, o destino é ainda mais
imprevisível. Comparações com exemplos do passado são inúteis e talvez
seja mais prudente olhar para o lado do que para o retrovisor. As redes
sociais inspiraram o movimento Occupy Wall Street e a chamada Primavera
Árabe. Durante a revolta popular de 18 dias, ocorrida no Egito no começo
de 2011, o Twitter e o Facebook facilitaram a organização de grandes
manifestações, com seu epicentro na famosa Praça Tahrir, e funcionaram
como plataforma para articular demandas políticas. Também há semelhanças
visíveis com a efervescência popular na Praça Taksim, em Istambul, na
Turquia. Aqui, como lá, os protestos atiçados pelas redes sociais
superaram em larga escala a fagulha inicial que os provocou. Na Turquia,
o estopim foi a ameaça de extinção pelo governo de um parque em
Istambul. “Esses foram os motivos deflagradores dos protestos, mas não
as causas”, diz o sociólogo Demétrio Magnoli. “Em ambas as situações se
confronta todo um sistema político, uma elite política inteira.” No
caso do Brasil, acredita Magnoli, tanto governo quanto oposição são alvo
dos manifestantes. “É bom que ninguém se engane: o que os jovens estão
dizendo é que as coisas não vão tão bem quanto estão dizendo para
eles.”
Para tentar explicar o que sacudiu o Brasil nos últimos dias, o
professor do Instituto de Economia da UFRJ Luiz Carlos Delorme Prado
recorre à figura do “efeito túnel” criada pelo economista Albert
Hirschman, falecido no ano passado. Segundo Prado, era como se o Brasil
estivesse num engarrafamento parado em duas pistas, estagnado desde a
década de 1980. Todos se encontravam desesperançados com a má
distribuição de renda e a falta de acesso aos bens de consumo e serviços
públicos, mas permaneciam resignados, já que ninguém se movia. Uma das
pistas começa, então, a andar e os que permanecem na outra, que não se
movimenta, se frustram e passam a exigir o movimento daquela fila. “Nos
últimos 15 anos houve uma grande melhoria na qualidade de vida de uma
parcela da população tradicionalmente excluída”, diz o economista. “A
fila andou, mas a qualidade de vida de outros segmentos da população não
melhorou proporcionalmente, porque a oferta e a qualidade dos serviços
públicos não acompanharam.” Hoje, segundo Prado, a percepção da
população sobre os partidos políticos é de que eles não têm projetos que
atendam às suas novas demandas. “O protesto não é fruto da miséria, mas
do progresso insuficiente”, diz ele.
Até quando durará o fôlego das ruas não se pode prever. Os protestos
pararam o País, situação que, se perdurar, não ajudará evidentemente
qualquer agenda por mais progresso e bem-estar da população. E esse é
apenas um dos dilemas que se colocam daqui para a frente. É fundamental
ainda que sejam coibidos com rigor os atos de vandalismo que a imensa
maioria dos manifestantes não se cansa de condenar e que apavoram a
nação. Uma mudança no modo de lidar com os anseios populares também se
impõe. A política nacional que parecia estática, engessada no embate
entre PT e PSDB, se moveu. Agora ela precisará levar em conta que a rua
se sente poderosa e decidida a fazer valer sua vontade. Será uma
imprudência entrar num processo político sem ter em mente o que ocorreu
nas últimas duas semanas. No ano eleitoral de 2014 não caberão mais
discursos desconectados como os que foram entoados na última semana.
Forçados a rever o aumento das passagens, autoridades disseram que, para
reduzir tarifas, teriam de rever investimentos. Pois não entenderam
nada: o grito da opinião pública foi justamente uma condenação das
prioridades de gastos que seus governos vêm adotando. É necessário que
todos entendam: a capacidade de mobilização das redes sociais não tem
limites e seu poder é transformador. Ali se expressa a insatisfação, se
mobiliza e se constrói, em tempo real, a história moderna.
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