Nos dias de hoje, com os tablets,
smartphones e videogames dominando o universo infantil, a magia do Natal
resiste e é fundamental para o desenvolvimento das crianças
Camila Brandalise
INFÂNCIA
Até os 7 anos, a criança entende o mundo por meio do imaginário e do fantástico
No dia 25 de outubro, dois meses antes do
Natal, o capixaba Ryan Lucas Teixeira da Silva, 9 anos, colocou seus
brinquedos de lado, se sentou em uma mesa, pegou papel e caneta azul e
começou a escrever uma carta para o Papai Noel. “Minha família é
maravilhosa e me dá tudo o que eu preciso, por isso quero que o senhor
entregue meu presente a uma criança que precise mais do que eu”, pediu.
No final da mensagem, se despediu desejando feliz Natal ao
destinatário, aos seus ajudantes e a todas as crianças do mundo. Nessa
época, a fantasia do Papai Noel povoa o imaginário infantil. Prova disso
é que os Correios estimam receber, só neste ano, cerca de um milhão de
cartas de todo o País endereçadas a ele. Imagens do velhinho simpático
vestido de vermelho estão por todos os lados. Enquanto isso, a maioria
das crianças ouve dos adultos que ele será o responsável por trazer os
presentes na noite de Natal. Chegará solenemente num trenó, conduzido
por elegantes renas, entrará nas casas de todo o mundo, numa mesma
madrugada, depositando os sonhos infantis sob as árvores iluminadas.
Mas, diante de uma geração tão
familiarizada com as novas tecnologias e que parece saltar a etapa da
infância dedicada à fantasia, uma dúvida dos pais é recorrente: ainda
faz sentido incentivar o mito do Papai Noel?
Para os especialistas, a resposta é sim. Até os 7 anos, as crianças
vivem o período do desenvolvimento cognitivo, em que seu entendimento do
mundo acontece por meio do imaginário, do fantástico. Reproduzir a
história do Papai Noel, um personagem caloroso e solidário, seria uma
maneira de estimular a criatividade e inserir no universo infantil
valores como a benevolência e a preocupação com o bem-estar do outro –
ensinamentos que o pequeno Ryan parece ter assimilado muito bem. “Não se
pode ficar preso à questão concreta, do presente. O bacana de ter a
figura do Bom Velhinho é passar a ideia de generosidade, pois a criança
leva esse conceito para outras épocas do ano”, afirma Ivete Gattás,
coordenadora da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Abusar da sinceridade e
dizer que o Papai Noel não existe pode quebrar esse encantamento,
segundo a psicopedagoga Teresa Messeder Andion, diretora da Associação
Brasileira de Psicopedagogia. “A criança ouve a história na escola,
escuta os amiguinhos falando e vê imagens de Natal espalhadas; portanto,
é natural assimilar a fantasia. Então, se em casa a família diz que é
mentira, ela vai viver em contradição”, diz.
A melhor escolha dos pais, segundo os educadores, é deixar o filho
fazer suas descobertas naturalmente. “Caso ele pergunte se Papai Noel
existe, a saída é ouvi-lo, tentar saber o que ele entende do Natal e
responder à pergunta questionando se ele acredita”, afirma a
psicopedagoga Teresa. A analista de tecnologia da informação Gleise
Segatto de Oliveira Teixeira, 32 anos, deixou que a filha Iara, de 6
anos, tomasse sua própria decisão. Apesar de não incentivar o mito,
ouviu-a perguntar ao pai, o também analista Jeyson Teixeira, 44 anos, se
ele acreditava no personagem. “Ele disse que não, mas que há pessoas
que acreditam. E ela optou por crer na história mais por influência da
comunidade”, diz Gleise, que não monta árvore nem dá presentes para a
filha no Natal. A aeroviária Monica Seminara, 43 anos, preferiu dar
outra resposta quando ouviu a pergunta do filho Gabriel, 10 anos. “Eu
disse que acreditava. Queria que ele continuasse acreditando também.
Mas, sozinho, foi descobrindo que não passava de uma lenda.” A outra
filha, Isabel, 7 anos, ainda espera a visita do Papai Noel. “Converso
com a Isa sobre como ele atende os sonhos das crianças. É uma lição de
esperança, uma história bonita.”
Normalmente, os questionamentos começam a surgir na idade de Iara,
aos 6 anos. “Acontece uma virada na capacidade da criança e ela passa a
ficar mais atenta ao mundo real do que ao imaginário. Não por acaso é a
idade que ela entra na escola”, afirma Ivete, da Unifesp. “É quando
começam a fazer as associações e por si só passam a questionar.” A fase
da infância em que é mais provável acreditar e se divertir com o Papai
Noel é entre os 4 e os 7 anos de idade, afirma a psicopedagoga Teresa.
“Até os 3 anos, a criança estranha mais ao ver uma pessoa fantasiada.”
Com um filho de 4 anos em casa, a projetista Alessandra Barth, 37 anos,
incentiva a brincadeira. “Deixo o Edgar imaginar, sonhar. Gosto disso”,
diz a mãe, que o ajuda a escrever as cartas. Já a filha da professora
Itália Nicolai, 48 anos, Mirella, 8, entrou na etapa da dúvida. “No ano
passado, meu primo se fantasiou e não tirou o tênis. Ela percebeu que
era ele por causa do calçado”, diz. O mais velho, Erick, 10 anos, já não
acredita mais. “Ele descobriu pelos amigos e nos perguntou. Vimos que
não tinha mais jeito e contamos a verdade. Foi tranquilo.” A mãe só
pediu a Erick que não revelasse a verdade à irmã. “Quero que ela
acredite até quando for possível.” Mas, na hora em que se der conta, o
melhor é não insistir. Caso contrário, os pais correm o risco de o filho
fingir crer na lenda somente para agradá-los.
Outro erro tão comum quanto grave: associar o Papai Noel unicamente
ao consumo. Claro que a criança vai relacionar a noite de Natal aos
presentes, mas a reunião familiar, a história por trás do mito e o
sentido da comemoração do nascimento de Jesus, caso a família seja
religiosa, precisam ser lembrados. “Nesse momento, a convivência é o
mais importante. Não se pode deixar levar apenas pela questão material”,
afirma a pediatra Evelyn Eisenstein, professora da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Outro problema é usar a figura como
um sistema de recompensa. “É muito melhor os pais dizerem que o que
filho fez não foi legal do que afirmar que o Papai Noel não vai lhe
trazer presentes. Eles saem do papel de educadores e passam a função ao
personagem. É um desserviço à educação da criança”, diz Ivete, da
Unifesp.
Uma questão dos dias de hoje é que, com a geração atual,
superconectada a tablets, smartphones e computadores, manter um mito
como o do Papai Noel fica mais difícil. “Elas têm mais acesso à
informação e o desenvolvimento neurológico é mais precoce”, afirma o
pediatra Marcelo Reibscheid. Segundo Tatiana Jereissati, coordenadora de
pesquisas do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da
Comunicação (Cetic), a internet tem forte presença no cotidiano
infantil. Andréa Jotta, psicóloga do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em
Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
afirma que, por conta disso, as novas gerações não estão acostumadas com
uma única resposta às suas dúvidas, pois sabem que podem chegar
facilmente a diferentes explicações. “Se tiver curiosidade e estiver na
idade de pré-alfabetização, consegue acessar essas informações sozinha”,
diz. O interessante, então, é não acabar com a fantasia, mas tentar
negociar. Mostrar que o Papai Noel pode não existir, mas é símbolo do
Natal, que há lendas a seu respeito fazendo parte de uma cultura. Para
Evelyn, da Uerj, a figura do Papai Noel pode ser ainda mais importante
no momento atual. “As crianças muito conectadas não sabem mais lidar com
os sentimentos, pois a vivência se volta para o virtual”, afirma ela,
que é autora do livro “Geração Digital: Riscos das Novas Tecnologias
para Crianças e Adolescentes”. “Por isso, é ainda mais interessante
inserir os mitos, pois o que envolve a brincadeira, como alguém da
família se vestir de Papai Noel, pode trazer o ‘sentir’ de volta.”
As tradições envolvendo a visita do Papai Noel na noite de Natal são
relativamente recentes (leia na pág. 62). Segundo o historiador Gerry
Bowler, professor de história do Natal na Universidade de Manitoba, no
Canadá, a maioria das lendas sobre o personagem surgiu no fim do século
XIX. “Era uma época em que a criação dos filhos estava se tornando menos
dura e mais sentimental. Também era o momento da Revolução Industrial,
quando cresceu a produção de mercadorias e os preços diminuíram. Papai
Noel permitiu aos pais serem generosos com as crianças uma vez no ano e
as vendas aumentaram durante essa época”, afirma Bowler. A origem do
mito, porém, é bem mais antiga e está ligada à Igreja Católica. A
história começa com São Nicolau, bispo de Mira, na Turquia, entre os
séculos III e IV, conhecido por presentear crianças com roupas e
alimentos. “São Nicolau dedicou sua vida para ajudar os outros. Ele
evangelizava com gestos, algo muito parecido com o que o papa Francisco
faz atualmente”, diz o padre Rafael Javier Magul, pároco da igreja
ortodoxa São Nicolau, de Goiânia. Para o sacerdote, os pais devem
aproveitar essa imagem que já existe para contar a história do homem
generoso por trás da lenda. “Papai Noel existiu de verdade e foi uma
pessoa misericordiosa que não se esquecia de ninguém”, diz padre Rafael.
Talvez por isso ocupe um espaço tão privilegiado no imaginário
infantil.
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