O Fantástico investigou médicos em vários países e no Brasil que prometem fazer essa cirurgia perigosa e proibida.
“Eu perdi 70% da visão. Não posso dirigir, nem trabalhar. Não consigo ler. Eu não consigo usar o computador. Eu não tenho mais uma vida normal. Me tornei uma pessoa incapaz”, conta Patrícia Rodrigues.
Esse drama na vida da Patrícia começou quando ela foi trabalhar como assessora de um cirurgião plástico. Na época, ela usava lentes de contato azuis, e recebeu uma proposta. “Depois de um ano trabalhando com ele, ele me apresentou essa cirurgia de mudança da cor dos olhos”, lembra a paciente.
A cirurgia só era feita no Panamá, um pequeno país da América Central. O médico brasileiro acompanhou Patrícia. Ela deixou de ter olhos castanhos e ganhou olhos azuis.
“Ele queria que eu divulgasse a clínica, a imagem dele, através desse procedimento. Seria uma novidade estética”, diz. Ela cona que, em troca, ganharia apenas o benefício estético. “Eu não paguei por essa cirurgia. Foi financiada por ele. A cirurgia, a viagem”, comenta.
Pouco depois da operação, o cirurgião plástico para quem Patrícia trabalhava morreu. E ela diz que passou a ser acompanhada por um oftalmologista da equipe.
“Doutor William Teixeira. Ele me acompanhou durante todo esse período, 3 anos e 8 meses que eu estive com os implantes”, afirma.
E a paciente afirma: foi sob os cuidados pós-operatórios do doutor William que ela quase ficou cega. “Eu perdi 70% da visão. É muito difícil, porque eu fico até com medo de esquecer a fisionomia dos meus familiares, esquecer como é meu rosto, porque eu não me vejo mais no espelho”, lamenta.
Patrícia não é a única. Nossa produção localizou em diversos países pacientes que fizeram implante de íris artificial no Panamá, e tiveram complicações sérias. Na Inglaterra. Nos Estados Unidos. No Canadá. No Brasil, médicos contam que também atenderam vítimas dessa cirurgia.
O oftalmologista Vital Paulino Costa conta que já recebeu três casos iguais aos da Patrícia no consultório. Todos da mesma cirurgia feita no Panamá. “Todos com as mesmas complicações”, afirma.
O Fantástico viajou até o Panamá, onde começou essa história. Desde 2004 a Cidade do Panamá, capital do país, vem recebendo brasileiros e pessoas de toda parte do mundo que chegam com o sonho de trocar a cor dos olhos. Eles podem ficar azuis, verdes, a gosto do freguês. E isso é possível. Tem que ter disposição para pagar 8 mil dólares por uma cirurgia aparentemente simples, mas cheia de riscos. Inclusive de levar à cegueira.
Nós fomos até a clínica do médico que diz ser o criador desse implante: o doutor Delary Kahn, o mesmo que operou a Patrícia. Ele nos explicou a técnica: a parte mais externa e transparente do olho é a córnea. Atrás dela, a íris, onde a luz é filtrada. Depois estão o cristalino e o nervo ótico. Através de um pequeno corte, a lente artificial colorida é inserida em cima da íris, como uma capa. Um procedimento que dura cerca de 10 minutos.
“Até agora temos mais de mil cirurgias realizadas. Temos muitos pacientes da América Latina, e muitos dos Estados Unidos. Brasileiros poderiam ser 8%, mais ou menos”, aponta o médico.
Se este número estiver correto, mais de 80 brasileiros podem estar com essas lentes artificiais hoje. Nós localizamos vários pacientes no Brasil que passaram por essa cirurgia, mas não querem aparecer porque se sentem constrangidos.
A operação só é legalizada no Panamá. E não existe no mundo nenhum estudo científico que comprove a segurança para os pacientes. “5% dos pacientes podem apresentar algum grau de complicação”, afirma o oftalmologista Delary Kahn.
Fantástico: Complicações que podem levar à cegueira?
Delary Kahn: Podem acontecer.
Fantástico: O senhor tem conhecimento de brasileiros que fizeram a cirurgia com o senhor e que enfrentam sérios problemas hoje?
Delary Kahn: Dos que foram feitos aqui, sei de apenas uma paciente brasileira.
Fantástico: É a Patrícia?
Delary Kahn: Patrícia.
Fantástico: A patrícia afirma ter ido e feito os exames regulares. Mas ela perdeu 70% da visão.
Delary Kahn: É muito lamentável, e não desejamos isso a ninguém.
Segundo os médicos que atenderam Patrícia, a lente artificial lesionou as células que ficam na parte interna da córnea e que são responsáveis por mantê-la transparente e garantir a visão perfeita.
O médico panamenho sugere que o oftalmologista que acompanhou Patrícia no Brasil teria demorado para detectar o problema. “Se tivesse detectado a tempo, e é possível detectar a tempo, indicaria a retirada do implante”, diz o médico.
Fantástico: Quando você sentiu o primeiro sintoma de que alguma coisa estava errada?
Patrícia: Primeira sensação foi de um embaçamento, como se fosse um box embaçando durante o banho.
Fantástico: Por que o médico não queria retirar a lente?
Patrícia: Porque eu ajudava a promover essa cirurgia, de certa forma.
Procurado por telefone, quarta-feira passada, William Teixeira concordou em dar entrevista. Mas, no dia seguinte, a advogada ligou cancelando a gravação.
Em nota enviada ontem ao Fantástico, a advogada do doutor William contrariou a versão de Patrícia. Disse que a paciente nunca pediu para que o médico brasileiro retirasse os implantes. E que foi ela quem abandonou o tratamento.
Mas Patrícia diz que enviou uma mensagem por celular para o médico William Teixeira, pedindo para retirar os implantes. Segundo ela, sem sucesso.
Patrícia: Eu tive que sair do Rio de Janeiro e ir a São Paulo pra buscar respostas com outro oftalmologista.
Fantástico: Que disse o quê?
Patrícia: Que eu tinha uma lesão irreversível na córnea e só voltaria a enxergar com transplante.
“Depois do transplante nós vamos checar como é que tá esse nervo ótico. E isso agora é difícil estabelecer, porque eu não consigo examinar o nervo ótico da Patrícia pela falta de transparência da córnea”, ressalta Vital Paulino da Costa, oftalmologista.
Patrícia conseguiu fazer um transplante de córnea, mesmo sem saber se voltaria a enxergar.
Diante da quantidade de pessoas que alegam ter sofrido complicações com a técnica do doutor Kahn, um médico americano fez um estudo sobre os pacientes que tiveram que retirar os implantes.
“Córneas inchadas, pressão ocular alta, e por causa disso, glaucoma. Todos estavam com os olhos doentes”, aponta David Ritterband, oftalmologista.
O médico faz um alerta: “Se esses implantes continuassem ali, todos ficariam cegos”.
Ainda nos Estados Unidos, procuramos um dos fabricantes das lentes usadas para mudar a cor dos olhos. Perguntamos em que países a cirurgia é feita. Por email, a empresa indicou um consultório em Ipanema, um dos bairros mais nobres do Rio de Janeiro. O médico é Edigezir Barbosa Gomes.
Nossa produtora marcou uma consulta. Ele faz a mesma cirurgia do Panamá, que é proibida no Brasil. Na sala de espera, encontramos um turista americano que tinha acabado de colocar o implante. "Não posso fazer nos Estados Unidos porque lá é ilegal", diz o americano.
Usamos uma câmera escondida. Apesar de ser um exame de rotina, o doutor Edigezir aproveita para oferecer a cirurgia:
Edigezir Barbosa Gomes: Trocar a cor do olho eu também troco, tá? A gente faz umas cirurgias aqui. Ontem mesmo troquei essa aqui.
Produtor: Nossa. É lente, né?
Edigezir: Não. Eu boto dentro do olho. Fica definitivo. Ela é experimental, ou seja, ela não tá aprovada por nenhuma instituição.
Mostramos a gravação da consulta para o Conselho Federal de Medicina, que regulamenta a prática médica no Brasil.
“Não é uma cirurgia aprovada. É proibida pelo Conselho Federal de Medicina. Isso fere o código de ética médica, por não cumprir uma resolução do Conselho Federal de Medicina que determina que novos procedimentos sejam aprovados pelo conselho federal”, explica José Fernando Vinagre, corregedor do CFM.
Produtor: E custa uma fortuna, doutor?
Edigezir: Não. Fica entre 6 e 8 mil dólares. Não tem recibo, não tem nada. É super escondido.
Produtor: Em dólar? A gente paga em dólar?
Edigezir: A maioria das coisas eu pago em dólar. Você pode dividir. Pelo menos metade eu tenho que ganhar em dólar, porque eu gasto. A outra metade é o meu lucro.
Edigezir: Deixa pago uma parte aí, deixa 3 mil dólares aí.
“Isso é crime fiscal, que a lei brasileira não permite. O paciente que paga uma consulta tem direito ao comprovante de que ele pagou para esse médico”, diz um representante do conselho.
O Conselho Federal de Medicina aponta outras irregularidades.
Produtor: Pelo fato de ser experimental, não tem problema nenhum?
Edigezir: Esse fato é que faz você me autorizar. Tem que ter o papelzinho.
Produtor: Como é que é?
Edigezir: Um termo. Mas tá em inglês. Eu não fiz em português. Você tem que dizer que fala inglês.
O conselho diz que o termo não tem valor: “Nenhum, primeiro porque ele tá em inglês. Ele teria que estar em português, e muito claro. Como a cirurgia não é reconhecida cientificamente no Brasil, não adianta o paciente consentir, porque ele já está na origem fazendo um procedimento que ele não deveria fazer”.
Voltamos ao consultório do médico Edigezir Barbosa Gomes.
Fantástico: Senhor Edigezir, nós temos conhecimento de que o senhor realiza essa cirurgia pra troca da cor do olho. Uma cirurgia que não é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina. O senhor confirma isso?
Edigezir: Exato. A cirurgia de mudança de cor de olho é uma cirurgia experimental.
Fantástico: Quanto o senhor cobra pra realizar a cirurgia aqui no seu?
Edigezir: Eu não cobro.
Fantástico: O senhor não tem lucro?
Edigezir: Lucro não.
Fantástico: Por que o senhor não daria recibo?
Edigezir: Porque aí eu teria que pagar pra fazer. Estou gastando mais ainda do meu dinheiro. Quanto é que você paga de imposto? Você sabe quanto que o médico paga de imposto? 27%.
“O que uma lente dessas pode causar? Ela pode causar uma inflamação crônica da íris, pode provocar glaucoma, pode provocar lesão da parte interna da córnea, do endotélio”, alerta o médico do conselho.
Fantástico: Segundo o Conselho Federal de Medicina, essa cirurgia coloca os pacientes em risco?
Edigezir: Quem é especialista na cirurgia experimental? Sou eu ou o conselho?
“Ele será submetido a um julgamento ético no Conselho Federal de Medicina do Rio de Janeiro”, afirma o representante.
Cegueira: este quase foi o destino da Patrícia. Depois de entrar na fila do banco de olhos, a sua história começou a ter um final feliz.
“A cirurgia foi perfeita, tudo ótimo. Patrícia está muito bem. Em torno de 1 a 4 semanas, ela já deve estar com a visão recuperada”, afirma Nicolas Cesário Pereira, cirurgião oftalmologista.
Dezessete dias depois do transplante, olha como encontramos a Patrícia: andando, subindo uma escada, firme, com segurança, e de salto.
Fantástico: O quanto você já tá enxergando?
Patrícia: 90% do olho direito, o olho que eu fiz o transplante.
Fantástico: O outro?
Patrícia: Ainda aguardo a resposta pra marcar a cirurgia
“Assim como deu certo pra mim, eu espero que dê certo para as outras pessoas que estão passando pelo mesmo problema que eu e estão sem coragem. Meu conselho é que elas não fiquem quietas”, diz a paciente.
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