Líbano
O conflito intensivo na Síria contagia o país, onde
as divisões confessionais e étnicas já provocaram uma longa guerra
civil.
por Gianni Carta
Sharif Karim / Reuters
Divisões. A luta intestina na Síria precipita no Líbano as inestinguíveis diferenças entre xiitas e sunitasEra questão de tempo para que as
divisões étnicas e religiosas precipitadas pela guerra civil na Síria
repercutissem no país vizinho, o Líbano. O quadro encrespou quando
recentemente o Hezbollah, a agremiação libanesa xiita representada por
deputados no Parlamento e com um braço armado, passou a abertamente
lutar a favor do exército do presidente sírio Bashar al-Assad. Criou-se,
assim, uma divisão relativa ao posicionamento do Hezb, como é conhecido
o movimento, entre as 18 comunidades a compor o instável mosaico étnico
e religioso libanês. Se os xiitas são representados por 25% da
população libanesa, a maioria no país é sunita, e desta vertente
islâmica faz parte um ala radical favorável a integrar ou a enviar armas
para o Exército Livre da Síria, este dominado pela Frente Al-Nusra,
formada por jihadistas sunitas e apoiada pela Al-Qaeda. Líderes sunitas
libaneses, como o xeque radical Ahmad al-Assir, apoiam a Al-Nusra.
De fato, no domingo 23, Al-Assir e alguns
de seus seguidores salafistas transportavam armas em um automóvel
quando foram detidos por soldados libaneses em um checkpoint. Em
seguida, consta, teriam sido espancados e, sem certeza quanto a isso,
colocados em liberdade. No mesmo dia, militantes sunitas resolveram se
vingar da prisão do clérigo radical a ao atacar o checkpoint da cidade
portuária de Sidon, situada 40 quilômetros ao sul de Beirute, a capital.
O número de baixas dos militantes sunitas é desconhecido, mas as
agências noticiosas revelaram que 16 soldados libaneses foram mortos.
Mais de cem ficaram feridos. Além de metralhadoras, os extremistas
lançaram foguetes, sinal de que estão preparados para futuros embates.
“O exército desta vez passou brilhantemente pelo teste da eficácia e da coesão”, observa Issa Goraieb, colaborador de CartaCapital e
editorialista do diário libanês L’Orient-Le Jour. “E se o exército
libanês sofreu perdas importantes é porque os soldados combateram como
soldados, não como militantes, tomando todos os riscos para defender,
dentro do possível, os cidadãos escondidos em abrigos irrisórios.”
Goraieb não toma partido no quesito extremismo. Ele condena também o
Hezbollah, a maior potência militar libanesa e tida por numerosos
cidadãos como o salvador do Líbano, visto que em 2006 venceu uma guerra
contra a maior potência militar do Oriente Médio, Israel. Segundo
Goraieb, ao se unir a Assad, “o saldo de respeitabilidade que o
Hezbollah havia obtido como campeão da resistência contra Israel” foi
por água abaixo.
O Hezb entrou na guerra civil síria para defender a
minoria alauíta, facção do xiismo da qual faz parte a elite no poder
naquele país, encabeçada por Assad. Ademais, havia de tomar uma posição,
visto que é financiado pelo Irã e pela Síria. Hassan Nasrallah, o líder
do Hezbollah, diz reconhecer que a sua participação na guerra civil
síria provocaria divisões no Líbano, mas sua organização, considerada
terrorista pelos Estados Unidos e pela União Europeia, precisava agir.
Nasrallah tomou a decisão somente há pouco tempo porque, vale exprimir, o
conflito na Síria se resumia a uma manifestação contra um ditador, não a
uma carnificina ao sabor do sectarismo como a atual.
Desde o início do embate na Síria, é
verdade, a afluência de refugiados sírios no Líbano, na sua vasta
maioria sunitas, já provocava divisões na sociedade libanesa. Por
exemplo, os campos de refugiados no Vale do Bekaa, 30 quilômetros a
leste de Beirute, onde o Hezbollah é bastante ativo, foram noticiados
conflitos entre integrantes da organização libanesa xiita e sírios. A
absorção desses recém-chegados tem sido um problema para um país
atingido por tensões regionais, étnicas e sectárias.
No entanto, o cenário tornou-se ainda
mais nebuloso para os libaneses quando a guerra civil síria tomou o rumo
do sectarismo. A razão: o Líbano é um espelho, em termos étnicos e
religiosos, da Síria. O grande temor é que o quadro se deteriore no país
do cedro, onde a lealdade à religião antecede aquela à nação. As
fissuras sectárias são mais transparentes do que na Síria. De fato, a
guerra civil libanesa, de 1975 até 1989, foi provocada por uma linha de
falha entre cristãos e muçulmanos. Desta feita, a cisão é entre xiitas e
sunitas. E é mais assustadora. Em meados dos anos 1970, xiitas e
sunitas, além das outras confissões, viviam em áreas definidas do país.
Atualmente, diferentes confissões se encontram espalhadas Líbano afora, e
houve, além disso, milhares de casamentos mistos, inclusive entre
xiitas e sunitas. Uma guerra civil no Líbano seria ainda mais sangrenta
do que a anterior, e quem sabe mais duradoura.
Não se sabe ao certo como
agirá, nesse contexto, o novo presidente iraniano, o reformista Hassan
Rouhani. Como disse a CartaCapital o cientista político Vali Nasr,
reitor da Universidade Johns Hopkins e ex-conselheiro sênior no
Departamento de Estado sob Barack Obama, é preciso negociar com os
iranianos, e não mais vê-los somente sob o prisma das forças do bem e do
mal, como fazia George Bush Jr. Nasr diz, porém, que Obama não tem uma
estratégia para o Oriente Médio. Enquanto isso, John Kerry, o secretário
de Estado, cogita, como os líderes da França e da Grã-Bretanha, armar
os rebeldes sírios para depor Assad. Por se opor ao Hezbollah e aos
iranianos, Kerry é instruído a lidar com os sauditas, que apoiam o
Exército Livre da Síria, independentemente do fato de esses rebeldes
serem comandados por extremistas, inclusive pela Al-Qaeda. A questão é a
seguinte: e que regimes virão depois? É claro, não se deve apoiar
Assad, um ditador com as mãos ensanguentadas, mas os EUA e a UE devem
apoiar rebeldes extremistas?
A hipocrisia de países ocidentais que
apoiavam, financiavam e eram financiados por Assad, Hosni Mubarak e
Muammar Kaddafi, entre outros, não arrefeceu. Enquanto isso, o Catar,
com seu fundo soberano, continua, à imagem dos sauditas, a entreter o
Ocidente com seus times de futebol e, ao mesmo tempo, a financiar
fundamentalistas sunitas. Diante desse quadro sombrio, o governo libanês
adiou as eleições de junho.
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