Um laboratório chamado Novo Nordisk lança um remédio. Ele é aprovado apenas para controlar o diabetes tipo 2. É um medicamento biológico, criado por um processo altamente complexo e inovador. Não se anime com a palavra. Inovador, nesse caso, significa que ninguém sabe muito bem o que pode acontecer no longo prazo. O remédio, cuja substância ativa é a liraglutida, precisa ser injetado diariamente na barriga ou no braço. O tratamento custa, em média, R$ 500 por mês. Em nenhum lugar do mundo o fabricante pede autorização às agências regulatórias para vender o medicamento como emagrecedor.
Adoraria pedir. Não pede por uma simples razão: embora os estudos clínicos iniciais tenham revelado que a droga pode provocar perda de peso, eles não foram capazes (ainda) de comprovar a eficácia do remédio para esse fim. E o mais importante: não se sabem quais são os efeitos colaterais e os possíveis danos à saúde.
Se um laboratório tentar pedir tal autorização às agências regulatórias (FDA, EMEA, Anvisa ou qualquer outra) sem apresentar as comprovações necessárias, vai receber um redondo “Não”. E ainda sair do episódio com a pecha de irresponsável.
Apesar disso, médicos brasileiros começam a receitar o remédio a pacientes desesperados por emagrecer. Não o indicam apenas aos obesos mórbidos, que correm evidente risco de morte. Gente que está apenas alguns quilos acima do peso normal corre aos consultórios - principalmente depois que o medicamento é divulgado na imprensa com a promessa de emagrecimento fácil, rápido e “sem grandes efeitos colaterais”.
Segundo um alerta da Anvisa, os efeitos colaterais podem ser muito mais graves. “Nos estudos clínicos do registro e nos relatórios apresentados à Anvisa foram relatados eventos adversos associados ao Victoza, sendo os mais freqüentes: hipoglicemia, dores de cabeça, náusea e diarréia. Além destes eventos destacam-se outros riscos, tais como: pancreatite, desidratação e alteração da função renal e distúrbios da tireóide, como nódulos e casos de urticária.”
Em outro trecho do alerta, a Anvisa ressalta: “Outra questão de risco associada aos produtos biológicos são as reações de imunogenicidade, que podem variar desde alergia e anafilaxia até efeitos inesperados mais graves. No caso da liraglutida a mesma apresentou um perfil de imunogenicidade aceitável para a indicação como antidiabético, o que não pode ser extrapolado para outras indicações não estudadas, por ausência de dados científicos de segurança neste caso."
E conclui: “A Anvisa não reconhece a indicação do Victoza para qualquer utilização terapêutica diferente da aprovada e afirma que o uso do produto para qualquer outra finalidade que não seja como anti-diabético caracteriza elevado risco sanitário para a saúde da população.”
O ímpeto que leva tanta gente a arriscar a vida pode ser explicado pelo fascínio pela novidade. O novo, em várias áreas do consumo, costuma ser melhor que o velho. Na medicina, a lógica é outra.
Remédio bom é remédio velho. Aquele que, depois de ser usado por gerações e gerações, se mostrou reconhecidamente eficaz e seguro. A menos que a pessoa sofra de uma doença terminal e incurável, não faz o menor sentido usar uma droga experimental nas condições absurdas em que o Victoza está sendo usado. Arriscar-se tanto para perder uns quilinhos?
Prazer mórbido ao ler a bizarrice médica. Um absurdo que não ocorre na China ou na Romênia.
Quem compra um remédio que não foi aprovado para o fim desejado é cobaia. No caso do Victoza, é cobaia de luxo. O sujeito confessa que usa o remédio com uma ponta de orgulho. Afinal, são poucos os que podem pagar R$ 500 por umas injeções modernas que são a nova promessa de emagrecimento.
As cobaias de luxo estão mais desprotegidas que os ratinhos pelados de laboratório. Aqueles que cortam o coração dos partidários do fim das pesquisas com animais. Os bichinhos contam com ONGs bem organizadas que saem em defesa de seus direitos.
Seres humanos que participam de estudos clínicos controlados (fundamentais para o desenvolvimento de novas drogas e para o avanço da ciência) também são protegidos por normas rígidas. São informados de todos os riscos, recebem assistência médica se algo der errado e, obviamente, não pagam pelas drogas experimentais que ingerem.
As cobaias de luxo estão na pior condição possível. São a escória da escória. Onde já se viu pagar (caro) por uma droga que ninguém sabe se funciona e que danos pode provocar? Se der tudo errado, vão reclamar para quem? O fabricante não pode ser responsabilizado pelo uso indevido de um de seus produtos. Se o remédio não tem aprovação da Anvisa, ela também não tem culpa. Talvez o médico pudesse ser enquadrado de alguma forma. Mas o profissional que se arrisca tanto desse jeito só o faz porque sabe se defender. Ao paciente, talvez reste reclamar para o bispo.
É curioso observar como pessoas céticas em vários campos da vida se deixam levar por tantas promessas de emagrecimento fácil. O obeso desconfia do corretor que lhe oferece um investimento maravilhoso, não cai na lábia do operador de telemarketing mais habilidoso, não se rende à chantagem emocional da mulher ou do marido. Mas se o médico ou o vendedor de ervas do Viaduto Santa Efigênia lhe oferece um elixir qualquer (tecnológico ou não) seus olhinhos brilham.
Estou convencida de que, para muitos obesos, não falta informação. Parece que o senso crítico deles fica rebaixado quando o assunto é emagrecimento. Parece que gostam de se enganar e de sentir enganados.
Como explicar esse fenômeno? Mais uma vez tive o prazer de conversar com a psicóloga Patricia Vieira Spada, autora do livro Obesidade e sofrimento psíquico: realidade, conscientização e prevenção (Editora Unifesp).
Segundo ela, acreditar em fórmulas mágicas, querer resolver as coisas com rapidez é uma forma de não se confrontar com as questões psíquicas que contribuem para a obesidade. “Todos os distúrbios alimentares (obesidade, bulimia, anorexia, etc) estão diretamente ligados ao afeto. Começamos a conhecer o mundo pela alimentação, mamando no peito da mãe. A partir dessa primeira relação com a mãe e com a alimentação muitas questões vão se desenvolver”, diz Patrícia.
“A comida funciona como um grande colo para as pessoas que têm dificuldade de lidar com frustrações. Elas correm para o chocolate, para o fast-food, para os pacotes de bolacha. Essa frustração pode ser algo extremo (a morte de uma pessoa querida, a demissão ou a perda de um namorado) ou algo muito corriqueiro. Não existe sofrimento sem importância”, diz ela.
A obesidade é determinada por diversos fatores. Mas se uma frustração (pequena ou grande) faz a pessoa sofrer, esse sofrimento precisa ser valorizado e investigado. Fortalecido emocionalmente, o obeso terá mais condições de se defender das falsas promessas. Infelizmente, elas são muitas.
Cristiane Segatto
Revista Época
Adoraria pedir. Não pede por uma simples razão: embora os estudos clínicos iniciais tenham revelado que a droga pode provocar perda de peso, eles não foram capazes (ainda) de comprovar a eficácia do remédio para esse fim. E o mais importante: não se sabem quais são os efeitos colaterais e os possíveis danos à saúde.
Se um laboratório tentar pedir tal autorização às agências regulatórias (FDA, EMEA, Anvisa ou qualquer outra) sem apresentar as comprovações necessárias, vai receber um redondo “Não”. E ainda sair do episódio com a pecha de irresponsável.
Apesar disso, médicos brasileiros começam a receitar o remédio a pacientes desesperados por emagrecer. Não o indicam apenas aos obesos mórbidos, que correm evidente risco de morte. Gente que está apenas alguns quilos acima do peso normal corre aos consultórios - principalmente depois que o medicamento é divulgado na imprensa com a promessa de emagrecimento fácil, rápido e “sem grandes efeitos colaterais”.
Segundo um alerta da Anvisa, os efeitos colaterais podem ser muito mais graves. “Nos estudos clínicos do registro e nos relatórios apresentados à Anvisa foram relatados eventos adversos associados ao Victoza, sendo os mais freqüentes: hipoglicemia, dores de cabeça, náusea e diarréia. Além destes eventos destacam-se outros riscos, tais como: pancreatite, desidratação e alteração da função renal e distúrbios da tireóide, como nódulos e casos de urticária.”
Em outro trecho do alerta, a Anvisa ressalta: “Outra questão de risco associada aos produtos biológicos são as reações de imunogenicidade, que podem variar desde alergia e anafilaxia até efeitos inesperados mais graves. No caso da liraglutida a mesma apresentou um perfil de imunogenicidade aceitável para a indicação como antidiabético, o que não pode ser extrapolado para outras indicações não estudadas, por ausência de dados científicos de segurança neste caso."
E conclui: “A Anvisa não reconhece a indicação do Victoza para qualquer utilização terapêutica diferente da aprovada e afirma que o uso do produto para qualquer outra finalidade que não seja como anti-diabético caracteriza elevado risco sanitário para a saúde da população.”
O ímpeto que leva tanta gente a arriscar a vida pode ser explicado pelo fascínio pela novidade. O novo, em várias áreas do consumo, costuma ser melhor que o velho. Na medicina, a lógica é outra.
Remédio bom é remédio velho. Aquele que, depois de ser usado por gerações e gerações, se mostrou reconhecidamente eficaz e seguro. A menos que a pessoa sofra de uma doença terminal e incurável, não faz o menor sentido usar uma droga experimental nas condições absurdas em que o Victoza está sendo usado. Arriscar-se tanto para perder uns quilinhos?
Prazer mórbido ao ler a bizarrice médica. Um absurdo que não ocorre na China ou na Romênia.
Quem compra um remédio que não foi aprovado para o fim desejado é cobaia. No caso do Victoza, é cobaia de luxo. O sujeito confessa que usa o remédio com uma ponta de orgulho. Afinal, são poucos os que podem pagar R$ 500 por umas injeções modernas que são a nova promessa de emagrecimento.
As cobaias de luxo estão mais desprotegidas que os ratinhos pelados de laboratório. Aqueles que cortam o coração dos partidários do fim das pesquisas com animais. Os bichinhos contam com ONGs bem organizadas que saem em defesa de seus direitos.
Seres humanos que participam de estudos clínicos controlados (fundamentais para o desenvolvimento de novas drogas e para o avanço da ciência) também são protegidos por normas rígidas. São informados de todos os riscos, recebem assistência médica se algo der errado e, obviamente, não pagam pelas drogas experimentais que ingerem.
As cobaias de luxo estão na pior condição possível. São a escória da escória. Onde já se viu pagar (caro) por uma droga que ninguém sabe se funciona e que danos pode provocar? Se der tudo errado, vão reclamar para quem? O fabricante não pode ser responsabilizado pelo uso indevido de um de seus produtos. Se o remédio não tem aprovação da Anvisa, ela também não tem culpa. Talvez o médico pudesse ser enquadrado de alguma forma. Mas o profissional que se arrisca tanto desse jeito só o faz porque sabe se defender. Ao paciente, talvez reste reclamar para o bispo.
É curioso observar como pessoas céticas em vários campos da vida se deixam levar por tantas promessas de emagrecimento fácil. O obeso desconfia do corretor que lhe oferece um investimento maravilhoso, não cai na lábia do operador de telemarketing mais habilidoso, não se rende à chantagem emocional da mulher ou do marido. Mas se o médico ou o vendedor de ervas do Viaduto Santa Efigênia lhe oferece um elixir qualquer (tecnológico ou não) seus olhinhos brilham.
Estou convencida de que, para muitos obesos, não falta informação. Parece que o senso crítico deles fica rebaixado quando o assunto é emagrecimento. Parece que gostam de se enganar e de sentir enganados.
Como explicar esse fenômeno? Mais uma vez tive o prazer de conversar com a psicóloga Patricia Vieira Spada, autora do livro Obesidade e sofrimento psíquico: realidade, conscientização e prevenção (Editora Unifesp).
Segundo ela, acreditar em fórmulas mágicas, querer resolver as coisas com rapidez é uma forma de não se confrontar com as questões psíquicas que contribuem para a obesidade. “Todos os distúrbios alimentares (obesidade, bulimia, anorexia, etc) estão diretamente ligados ao afeto. Começamos a conhecer o mundo pela alimentação, mamando no peito da mãe. A partir dessa primeira relação com a mãe e com a alimentação muitas questões vão se desenvolver”, diz Patrícia.
“A comida funciona como um grande colo para as pessoas que têm dificuldade de lidar com frustrações. Elas correm para o chocolate, para o fast-food, para os pacotes de bolacha. Essa frustração pode ser algo extremo (a morte de uma pessoa querida, a demissão ou a perda de um namorado) ou algo muito corriqueiro. Não existe sofrimento sem importância”, diz ela.
A obesidade é determinada por diversos fatores. Mas se uma frustração (pequena ou grande) faz a pessoa sofrer, esse sofrimento precisa ser valorizado e investigado. Fortalecido emocionalmente, o obeso terá mais condições de se defender das falsas promessas. Infelizmente, elas são muitas.
Cristiane Segatto
Revista Época
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