9.09.2011

É fácil pegar hepatite B e C na manicure. Por que não dá para confiar na esterilização feita nos salões de beleza

O mito da mulher limpinha
Nunca conheci uma mulher que não faça as unhas. O mercado profissional das manicures é curioso. Quando a economia vai bem, as plaquinhas que anunciam vagas se multiplicam pelas cidades – dos salões luxuosos às bibocas mais improvisadas. Quando a economia vai mal e o desemprego avança, as manicures são as últimas a sentir a crise. O salário delas passa a sustentar a família. Manicure não fica sem trabalho. É serviço de primeira necessidade – às vezes disputado no grito pelas clientes.
Se todas as mulheres e muitos homens frequentemente sofrem ferimentos provocados pelos alicates – os terríveis “bifes” – quem garante que não sairão do salão infectados por um vírus que pode ser fatal?
Ninguém garante. A existência de autoclaves e estufas nos salões não é garantia de coisa alguma. Foi o que descobri ao entrevistar a professora de enfermagem Andréia Schunck, do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.
Em seu doutorado, Andréia decidiu investigar de que forma as manicures contribuem para a disseminação das hepatites. Ninguém sabe ao certo quantos são os portadores dos vírus B e C no Brasil. Estima-se algo entre 1,5 milhão e 4 milhões. É gente demais.
Esses vírus provocam inflamação no fígado. São um gravíssimo problema de saúde, como contou o médico Drauzio Varella na coluna da semana passada. Drauzio vai levantar o assunto na nova série do Fantástico, que estreia no dia 17.
Os vírus podem danificar o fígado durante décadas sem dar o menor sinal. Quando o doente o descobre, já infectou várias outras pessoas por meio do contato com material perfurante ou nas relações sexuais. Muitas vezes a doença já chegou à fase de cirrose ou câncer. O único recurso passa a ser o transplante. Ele é disputado numa fila cruel, mais longa que a do coração e a dos rins. Grande parte dos pacientes morre antes de conseguir o órgão.
É chocante perceber que todo esse sofrimento poderia ser evitado se normas básicas de higiene fossem efetivamente cumpridas. Andréia visitou cem salões de beleza da capital paulista. Na periferia, no centro, nos shoppings, nos bairros nobres. A metodologia foi rígida. Para evitar qualquer viés que invalidasse os dados, pediu ao Datafolha que dividisse as regiões da cidade por amostragem. O instituto de pesquisa informava um ponto de referência em cada bairro. Uma banca de jornal, uma padaria, uma loja.
A partir dele, a missão de Andréia era caminhar aleatoriamente até encontrar o primeiro salão de beleza. Ao encontrá-lo, se apresentava e fazia a pesquisa. “No Brás, caminhei duas horas e meia até achar um salão. Durante toda a pesquisa emagreci 16 quilos”, diz ela. O esforço valeu a pena. Trata-se de um estudo inédito no mundo.
Andréia passava de seis a dez horas em cada salão. Entrevistava as manicures, observava como elas trabalham e colhia sangue para verificar se tinham o vírus da hepatite B ou C. Em TODOS os salões, encontrou práticas inadequadas.
As manicures não lavavam as mãos depois de atender cada cliente, não lavavam o material antes de colocá-lo no equipamento de esterilização, não usavam as autoclaves corretamente etc. Em um deles, as profissionais achavam que colocar os alicates no forninho elétrico seria suficiente. Tiravam pães de queijo da assadeira e colocavam os alicates no lugar. Inútil. O calor do forninho não é suficiente para matar os vírus.
Até nos salões mais badalados, frequentados por celebridades e divulgados como templos exclusivíssimos do luxo e da beleza, Andréia observou pelo menos um descuido capaz de permitir a transmissão dos vírus.
As manicures não têm noção do risco que correm. Podem pegar a doença das clientes caso se machuquem com o material usado.O mesmo pode acontecer se fizerem as próprias unhas com o material infectado pelas clientes. Andréia observou que essa é uma prática mais comum do que se imagina.
Num dos salões mais chiques de São Paulo, Andréia quis saber por que a manicure não usava luvas. A moça respondeu:
“Não tem perigo. Minhas clientes são limpinhas”.
Tentar adivinhar a condição de saúde de alguém pelas pistas sugeridas pela boa aparência e pela condição social privilegiada é uma tremenda bobagem. Passar a tarde no ofurô, entregar as chaves da BMW ao manobrista e desfilar uma Louis Vuitton por semana não torna ninguém imune aos vírus. Eles não fazem distinção entre os limpinhos e os sujinhos. Os vírus têm um único objetivo neste planeta: crescer e se multiplicar. Para cumprir essa missão com eficiência, é preciso infectar as pessoas sem matá-las rápido demais. Quanto mais tempo o hospedeiro sobreviver e espalhar a praga, mais descendentes os vírus colocarão no mundo.
É exatamente o que fazem os vírus da hepatite B e C. O vírus B é cem vezes mais infectante que o da aids. Tem a capacidade de permanecer vivo em superfícies por até sete dias. A pessoa infectada é capaz de viver décadas sem notá-lo. A mulher que contrai o vírus B na manicure pode transmiti-lo ao parceiro se não usar camisinha nas relações sexuais. A transmissão sexual do vírus C é controversa e rara, mas os especialistas dizem que ela também pode ocorrer. “Parece estar restrita a alguns grupos de risco com práticas sexuais anais e traumáticas”, diz Raymundo Paraná, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia.
Entre as manicures, a prevalência dos vírus da hepatite é maior que na população geral. Foi o que Andréia comprovou. Os exames de sangue demonstraram que 10% das profissionais entrevistadas estavam infectadas. O vírus B apareceu em 8% da amostra e o vírus C em 2%.
A forma mais segura de se proteger da doença é a vacinação. Existe vacina para o vírus B, mas não para o C. O SUS oferece a vacina contra hepatite B a grupos específicos (profissionais da saúde e do sexo, imunossuprimidos, coletores de lixo etc). As manicures fazem parte dessa lista, mas apenas 15% das mulheres entrevistadas por Andréia sabiam que tinham direito à vacina.
As manicures também tinham muitas dúvidas sobre a forma correta de higienizar o material. Para não correr risco de se infectar ou de infectar as clientes, a profissional precisa cumprir todos os passos a seguir. Na próxima vez em que for ao salão, observe se eles realmente foram cumpridos. É provável que você se assuste:
1) Antes de atender cada cliente, lavar as mãos ou usar álcool gel
2) Colocar as luvas. Usar um novo par a cada cliente
3) Usar lixa e palito descartáveis (um para cada cliente)
4) Abrir o pacote com o material esterilizado na frente da cliente
5) Usar uma toalha limpa ou descartável para cada cliente
6) Lavar os alicates, a espátula e outros instrumentos metálicos reutilizáveis com água, sabão e escova
7) Enxugar esse material com toalha limpa e colocá-lo no envelope especial para esterilização
8) Selar o envelope e colocá-lo na estufa ou na autoclave
9) A estufa não pode ser aberta durante a esterilização. Se uma manicure abrir a porta da estufa enquanto outra deixou o material lá dentro, a esterilização fica comprometida. É preciso manter a estufa funcionando durante uma hora ininterrupta, à temperatura de 170 graus
10) A autoclave é mais fácil de controlar porque funciona como uma panela de pressão. Basta colocar o envelope, fechá-la e esperar até o final da esterilização.
Se você gostou desses passos, espalhe o link e contribua para a saúde de todos. Outra opção é fazer um kit e levar o seu próprio material ao salão. Não basta levar apenas o alicate. “Levo acetona, esmalte, palito, espátula, alicate, tudo”, diz Andréia. Ela tem dois ou três alicates. Manda afiá-los nas mesmas casas especializadas onde as manicures compram o material de trabalho.
Neurose demais? Pode ser, mas estou convencida de que o sofrimento provocado pelos vírus da hepatite é infinitamente maior. “O erro de muitas mulheres é desvincular a saúde da beleza”, diz Andréia. “É importante cuidar da beleza. Mas com saúde”.
(Cristiane Segatto)
Revista Época

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