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Homossexualidade incomoda a quem?

Um personagem contra o preconceito
Em uma interpretação primorosa na pele
do vilão regenerado Félix, o ator Mateus Solano leva o tema da
homossexualidade para a casa das famílias brasileiras. Especialistas
explicam o que isso significa
Camila Brandalise e Michel Alecrim
CENA 1
- Eu gostei da Edith. Tínhamos uma relação conjugal.
- Jura? Vocês iam para a cama mesmo?
- Pra você ver que talvez eu não seja um cara assim tão definido, apesar de ter minhas preferências.
- Ué, Félix, você pode ser bissexual.
- Eu bissexual? Bichexual, né?
CENA 2
- Niko, sinceramente, não faço o seu tipo. E nem você o meu.
- Félix, você não tem tipo. Você tem pressa. Eu chamei você para dormir no quarto de hóspedes.
- Você me chamou com segundas intenções.
- Não sou esse tipo de pessoa que quer se aproveitar de alguém que chega aqui completamente por baixo.
- Por baixo? Frase de duplo sentido, hein? Quem gosta de ficar por baixo?
- Que? Eu não gosto nem de ficar por baixo.
QUÍMICA
Um é o mau-caráter que passa por um processo de redenção. O outro é o chef de
cozinha que sonha em formar uma família. Juntos, Mateus Solano (à esq.) e
Thiago Fragoso se tornaram o centro das atenções da trama das nove
Os diálogos acima foram travados na terça-feira 7 em um programa que,
tradicionalmente, prima pelo conservadorismo, a novela das nove. Foi
visto por cerca de oito milhões de famílias brasileiras, se considerada a
média de audiência nacional da trama no dia, de 40 pontos. A conversa
seria mais um roteiro banal de novela caso os personagens envolvidos não
fossem dois homens gays que se tornaram o principal par romântico da
história – Niko, papel de Thiago Fragoso, e Félix, em interpretação
magistral de Mateus Solano. A despeito do formato pouco liberal, “Amor à
Vida”, da Rede Globo, tem hoje o primeiro casal gay protagonista de uma
novela, justamente a do horário mais nobre da grade. Segundo a Globo,
telespectadores chegam a ligar para a Central de Atendimento ao
Telespectador (CAT) da emissora para se manifestar a favor da dupla. Em
grande parte, os louros pelo sucesso do romance são de Solano. Com uma
interpretação minuciosa, pendendo ora para o humor, ora para o drama, o
ator de 32 anos fez o espectador torcer para o mau-caráter que, nessa
reta final, tem expurgado seus pecados de forma convincente. “Félix
conquistou o telespectador como vilão por ser engraçado, emotivo,
impulsivo, contraditório, como, em última análise, todos nós somos”, diz
o autor Walcyr Carrasco. “A performance de Mateus Solano tem tudo a ver
com o êxito da história”, afirma Maria Immacolata Lopes, coordenadora
do Centro de Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo (USP).
EM CENA
O autor Walcyr Carrasco admite: inicialmente, Niko (à esq.) e Félix não formariam um casal.
Agora, telespectadores ligam para a Rede Globo pedindo que eles fiquem juntos
Mas há de se pesar outros fatores para o sucesso da dupla gay,
principalmente a mudança da sociedade, em que a maioria heterossexual
tem se tornado mais sensível a temas ligados ao universo LGBT. Em outros
tempos, casais homoafetivos tiveram suas histórias modificadas por
causa da rejeição do público – o caso mais emblemático foi o de “Torre
de Babel”, exibida pela Globo em 1998, em que duas personagens foram
mortas porque os espectadores não aprovaram o romance lésbico entre elas
(leia mais na pág. 6). O próprio autor da novela, Silvio de Abreu,
admite que, se fosse exibida hoje, a história não causaria tanta
comoção. “Casais gays são uma constante nas tramas e já não assustam
mais ninguém”, diz ele, que teve outros homossexuais em suas obras:
Sandrinho (André Gonçalves) e Jefferson (Lui Mendes), de “A Próxima
Vítima”. “A principio, a história deles havia sido vetada até pela
emissora”, afirma. Não que o fato de Niko e Félix se envolverem tenha
peso para mudar a sociedade ou indique que o preconceito está prestes a
acabar. Mas, de alguma maneira, leva para os milhões de famílias que
acompanham a trama diariamente um assunto que, em muitos lares, é
considerado tabu. O interessante, no caso de “Amor à Vida”, foi que o
romance homossexual parece ter sido uma vontade do público seguida por
Carrasco, que não planejava, inicialmente, unir Niko e Félix. “Sou muito
instável como o autor e justamente por isso é que hoje existe esse
casal”, diz. Sempre atento às opiniões alheias, ele afirma que a
mentalidade do País está mudando sim. “Casais formados por pessoas do
mesmo sexo estão deixando de ser algo marginal à sociedade para entrar
na legalidade.”

Ver dois gays se tornarem o principal casal romântico de uma novela,
um produto de comunicação de massa exibido por uma emissora que, na
iminência de perder audiência, sempre pende para o conservadorismo, é
indício de que os tempos são outros. “É uma feliz junção de signos
artísticos perfeitamente harmoniosos com uma nova etapa da evolução
social”, afirma Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia brasileira e
latino-americana pela USP. De fato, é um tema da agenda do País. Um dos
marcos da discussão pelos direitos dos homossexuais se deu em 2011,
quando o casamento gay foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal por
unanimidade. “Por que o homossexual não pode constituir uma família?
Por força de duas questões que são abominadas pela Constituição: a
intolerância e o preconceito”, afirmou à época o ministro Luiz Fux. No
ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu pela
obrigatoriedade dos cartórios de oficializarem matrimônios entre pessoas
do mesmo sexo. Também em 2013 a cantora Daniela Mercury assumiu seu
relacionamento com a jornalista Malu Verçosa, fazendo o tema voltar à
tona com vigor. A discussão, tanto no âmbito legal e político quanto no
cultural, contribui para dar visibilidade ao assunto. “É uma maneira de
quebrar estigmas retratando a questão com naturalidade. Faz os mais
conservadores refletirem e pode ajudar quem está em conflito com a
própria sexualidade a ver que outras pessoas passam pelos mesmos
dilemas”, diz a psiquiatra Alessandra Diehl, coordenadora do curso de
pós-graduação de Transtornos da Sexualidade da Universidade Federal de
São Paulo.

Para Maria Immacolata, do Centro de Estudos de Telenovela da USP, o
folhetim nacional é mais do que um retrato do cotidiano dos brasileiros.
“Se fosse só isso, a novela seria muito mais conservadora. Acredito que
ela elabora temas sociais e devolve uma discussão mais avançada. Tanto é
que, no Exterior, quem vê nossas tramas tem a impressão de que os
brasileiros são muito mais liberais do que de fato são”, afirma. Mas,
para entender melhor a questão, é importante diferenciar o público do
privado, segundo o psicólogo Paulo Tessarioli, especialista em
sexualidade. “A temática gay é aceita com mais naturalidade na televisão
do que no meio social. Individualmente, o espectador aceita ver um
casal homoafetivo e até torce por ele. Porém, encontrar esse casal na
rua, no espaço público, ainda assusta, porque coletivamente ainda existe
muito preconceito.” Segundo o Grupo Gay da Bahia, organização que
compila anualmente agressões contra homossexuais e transexuais, em 2013
foram registrados 306 homicídios de gays no País. O dado faz parte de um
estudo inédito que será divulgado no final deste mês. “É um pouco menos
do que em 2012, com 338. Mas o Brasil ainda responde por 44% desses
crimes cometidos em todo o mundo”, afirma Luiz Mott, antropólogo e
fundador do grupo. Já as queixas em relação a crimes de homofobia
crescem timidamente. Em São Paulo, por exemplo, segundo a Delegacia de
Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), foram registrados
nos anos de 2011, 2012 e 2013, respectivamente, 30, 41 e 49 boletins de
ocorrência relacionados a delitos praticados contra a população LGBT – o
órgão esclarece que esse número deve ser maior.

Para Mott, apesar de as novelas abordarem o mundo gay, ainda há uma
forte homofobia cultural. “Muitos telespectadores só aceitam o gay como o
engraçado, para provocar riso. É preciso mostrar os tipos diferentes,
não só o caricato. Além disso, deviam exibir cenas de intimidade
afetiva, como acontece com os casais héteros.” Em “Amor à Vida”, o casal
“oficialmente” protagonista, formado por Paloma (Paolla Oliveira) e
Bruno (Malvino Salvador), já encenou momentos quentes. Nem isso, porém,
foi suficiente para mantê-los em alta. Já sem conflito para ser
resolvido – e, consequentemente, sem brilho –, a grande expectativa de
desfecho é entre Niko e Félix. Mais do que ficarem juntos, será que os
dois vão protagonizar o famigerado beijo gay, um dos grandes tabus da
tevê? Um selinho poderia ser um grande final para um casal pelo qual a
audiência torce. Mauro Mendonça Filho, porém, diz que isso não é uma
preocupação. “Acho que já rompemos outras barreiras na novela. Sendo bem
sincero, essa questão até me soa como algo do passado.” Para Carlos
Magno Fonseca, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), a televisão está atrasada
em adiar o tal beijo. “Mas mostrar um casal gay adotando uma criança é
até mais importante, pois tem a ver com direitos civis.” Irineu Ramos
Ribeiro, autor do livro “A TV no Armário – A Identidade Gay nos
Programas e Telejornais Brasileiros”, acredita que dificilmente Félix e
Niko vão protagonizar uma cena de afeto mais intensa. “Um beijo iria
incomodar o público, e não é isso que a emissora quer.”

Com ou sem beijo, o grupo dos personagens inesquecíveis da
teledramaturgia nacional ganhou um novo membro, graças à interpretação
primorosa de Solano. E pensar que, antes de a novela estrear, o ator se
preparava – e até torcia – para ser odiado. “Acho um barato ser um vilão
e receber vaias”, diz (leia entrevista nas págs. 4 e 5). A missão era
mesmo difícil. Retratado como vítima ou personagem submisso, o
homossexual, dessa vez, apareceria malicioso e mau-caráter. Bem
diferente do estereotipado Crô, personagem de Marcelo Serrado em “Fina
Estampa”, de 2011/2012, e de vários outros papéis que carregavam na
afetação. Mas bastou o primeiro capítulo ir ao ar para a “bicha má” se
tornar um dos preferidos do público. Mauro Mendonça Filho, diretor da
trama, chega a falar do “talento extraordinário” de Solano como
explicação para o par com Niko ter dado tão certo. Para Fonseca,
presidente da ABGLT, a interpretação é convincente. “O personagem tem o
que chamamos de ‘pinta’, usa o linguajar gay, mas não é tão caricato
como os de outras tramas.” No papel do bonzinho Niko, o ator Thiago
Fragoso, que praticamente virou a “mocinha” da novela, tamanha a torcida
para o seu final feliz, também deu muita contribuição para o sucesso da
dupla. Tanto que já foi apontado por espectadores como um dos
preferidos da trama. “Ele sempre foi carinhoso, justo e lutou para ser
pai. Isso floresceu a empatia com o espectador”, afirma Maria
Immacolata, da USP. O próprio Fragoso credita ao sonho do personagem de
ter uma família uma das razões para a boa aceitação. “Me parece que,
numa sociedade conservadora, o desejo de paternidade/maternidade é o
melhor atalho para o coração do público”, afirma Fragoso. Soma-se a isso
o sofrimento de Niko em diferentes partes da narrativa e, claro, a
ótima interpretação do ator, que parece ter ficado ainda melhor desde o
início do romance. “Ele fez uma composição sensível e foi o bom caráter
da novela”, afirma o diretor Mauro Mendonça Filho. “Ficou fácil torcer
pelos dois. Vejo crianças, homens rudes e senhoras conservadoras
torcendo por esse amor.” Agora é esperar pelos próximos capítulos.
“Estava preparado para ser odiado”
ISTOÉ – Você chegou a temer que um personagem gay e vilão provocaria antipatia entre os homossexuais?
Mateus Solano - Pelo contrário. Foi um dos meus maiores
estímulos, o desafio desse personagem. Não só por ser inédito, mas pelas
características desafiadoras mesmo. Eu estava preparado para tudo, até
para ser odiado. Eu acho um barato você ser um vilão e receber vaias.
ISTOÉ - Por que os personagens gays de “Amor à Vida” conseguiram uma empatia maior do público do que os de outras novelas?
Solano - Acho que o Walcyr (Carrasco) escreveu personagens mais humanos.
O homossexual sempre foi, e é até hoje, acho que por medo da não
aceitação, pintado com tintas muito fortes e estereotipadas. Não que o
Félix não tenha essas tintas, mas ele também tem um outro lado, muito
humano. E, com o humano, vêm as verdades e as questões que o homossexual
passa na nossa sociedade até hoje. Tudo isso está colocado de uma forma
muito prazerosa de se assistir. Os personagens são muito carismáticos e
têm identificação com o público, mesmo o público em questão não sendo
homossexual.
ISTOÉ -
Em que medida você procurou evitar construir um personagem muito
estereotipado ou caricato? Isso ajudou ou atrapalhou a identificação do
público?
Solano - Em toda a medida eu tentei. Na verdade, quando eu
recebi a proposta era fazer um personagem gay que estava dentro do
armário. Mas, quando eu li o primeiro capítulo, eu já vi que um cara que
fala “pelas contas do rosário”, “salguei a santa ceia” e jargões do
universo gay... Ele não podia estar dentro do armário. Fui abrindo mão
da seriedade que eu havia pensado para o personagem e passei a aceitar
que o Walcyr (Carrasco) estava escrevendo um personagem bem mais
colorido. Aos poucos, eu também percebi que essa histrionice do Félix
tinha muito mais a ver com a sua vontade de aparecer do que qualquer
outra coisa. O que eu acho mais precioso foi a cena em que foi
“revelada” a homossexualidade do Félix. A reação de todo mundo não foi
de surpresa, foi de “ah, meu Deus, vou ter que mexer neste vespeiro”.
Quando cai a máscara, quem sai do armário é a sociedade que está em
volta do Félix e a família dele. Eles que têm que sair do armário e
aceitá-lo como ele sempre foi. Por mais que falasse que não era gay, ele
gritava isso aos sete ventos.
ISTOÉ - É possível para o Félix se redimir sem mudar seu estilo, ou seja, o público vai relevar seu lado sarcástico?
Solano - Eu acho que é o que o público quer. O Walcyr
(Carrasco) escreve para o público. Ele escreve em cima do que o público
vai achando e dizendo enquanto a novela está sendo exibida. Então acho
que, neste sentido, essa redenção que ele está encontrando não significa
que ele vá perder esse sarcasmo. Essa que é a delícia. Você tem um
Félix que, apesar de dizer que é mau, você vê que é um cara carinhoso.
Por mais que ele queira continuar com essa máscara de malvado.
Fotos: João Cotta/ Rede
Globo; Montagem sobre foto de Masao Goto Filho/Ag. Istoé; MAX G PINTO;
Renato Rocha Miranda;Rafael Hupsel/Agência Istoé ; Estevam Avellar/ Rede
Globo
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